GOMZEILHOS ÚDEIS do Douktor Otto Müster

GorreSbontende Allemon 3.Nouka zer bonn pricá komm álkeim maize vorlde gue nois.

16.1.10

Contos



UM INFERNO NUNCA DANTES IMAGINADO


 “(...) em seguida todos os mortos ressuscitarão e, no Juízo Final, ou bem serão exaltados e viverão com Cristo, ou bem serão conduzidos àquele outro lugar, tão desagradável, na companhia dos personagens mais interessantes da História (...)”
Stephen Jay Gould.
I


          Logo que morreu, Bruno Latini não compreendeu de imediato o que se passava. Não levou muito tempo, no entanto, para ele perceber que estivera errado por toda a sua vida. Somente o fato de ele ter despertado após a sua morte física já foi um duro golpe em suas convicções, mas o que foi fazendo com que ele notasse que não se enganara apenas sobre a vida após a morte, mas também suspeitar que seu engano fosse ainda maior, foi que enquanto ia recuperando a consciência, também percebia que estava descendo involuntariamente uma escada de um corredor muito estreito e abafado, e que, quando tentava voltar e subir os degraus, alguma força magnética inexplicável não permitia e tornava a o impelir para baixo.
          Claro que para o seu temperamento cético, isso tudo, por mais estranho que pudesse parecer, ainda não foi o suficiente para que ele chegasse a concluir que definitivamente estava errado sobre todas as coisas. Mas esta conclusão deixou de ser totalmente necessária se formar em seu raciocínio quanto mais ele descia os degraus e a temperatura ia aumentando. Com a última curva no último lance da escadaria desapareceu sua derradeira dúvida, quando viu diante dele uma estreita e velha porta de madeira pintada de branco, na qual se podia ler em todos os idiomas conhecidos e em outros desconhecidos a palavra: “inferno”.
          Bruno Latini ainda esboçou um tímido sorriso de incredulidade. Ficou indeciso se devia ou não bater na porta. Resolveu que não podia ficar parado ali por toda a eternidade. Quando ergueu o punho para bater, a porta abriu sozinha. Ele sentiu um empurrão daquela força misteriosa e num segundo estava dentro de uma minúscula sala muito mal iluminada com uma lâmpada fraquíssima que causava uma sensação deprimente. Atrás da porta estava o homem que a tinha aberto. Era um senhor de meia idade, vestido elegantemente e bem apessoado. Não era bonito, mas não chegava a ser feio. No seu rosto pálido figurava um sorriso estranho que não se podia definir ao certo se era de alegria, ironia ou apenas de amabilidade. O sujeito fez uma leve reverência com a cabeça e indicou com a mão e com os olhos uma cadeira em frente a uma pequena escrivaninha, para que Bruno Latini se sentasse. Dirigiu-se para o lado oposto do móvel e aguardou que Bruno Latini estivesse sentado para ele fazer o mesmo. Bruno Latini não ousava quebrar o silêncio que era sepulcral por sentir certo receio daquele desconhecido e de todas aquelas situações inusitadas que lhe ocorrera num determinado tempo desde a sua morte. Tempo este que ele não conseguia precisar se foram horas, minutos ou mesmo segundos. Fosse como fosse não precisou esperar muito mais, pois o anfitrião assim que se viu sentado, sem emitir um único som entregou-lhe um envelope lacrado com cera vermelha, fazendo novo sinal com os olhos e com as mãos para que o abrisse.
Bruno Latini com um sentimento misto de expectativa, receio e resignação, abriu o envelope e tirou de dentro deste um cartão onde estava escrito com tinta dourada e letras artisticamente trabalhadas as seguintes palavras: “os cristãos estavam certos”.

II

Bruno Latini acordou. Era o seu segundo ano no inferno. Levantou da sua cama de colchão de palha seca que ficava presa na parede de pedra por meio de correntes, atravessou o pequeno e rústico cômodo que lembrava um claustro de um mosteiro. Foi até uma pia, se lavou, pegou alguns livros, algumas folhas de papel e lápis e uma maçã que estava sobre uma mesinha, que junto com a cama constituíam todos os móveis do aposento. Mordeu a maçã com determinação, abriu a porta e saiu. Desceu dois lances de escada até chegar a um saguão que dava acesso a um estranho jardim onde todas as árvores e outras plantas tinham os galhos escuros como se tivessem sido queimados, e, embora fizesse bastante calor, qualquer tipo de vegetação ali, era despida de folhas e de flores como se estivessem sob um rigoroso inverno. Acabou de engolir o resto da maçã, atravessou o jardim e estava prestes a entrar num dos outros prédios quando ouviu uma voz feminina que lhe chamava.
— Bruno!
— Olá Bia. Bom dia. Como está se sentindo hoje? Tem se recuperado bem das noitadas?
— Ah, tudo bem. A gente se acostuma cada vez mais, e afinal de contas eu sempre gostei disso, você sabe — Disse piscando-lhe um olho.
— Mas porque você está aqui nesta ala? Não me diga que vai assistir à palestra?
— Eu? Sem chance. Não entendo nada que estes homens falam. Ainda bem que não sou obrigada. Quem é o de hoje?
— O Dr. Schopenhauer.
— Credo, este aí então entendo menos ainda. Uma vez, para passar o tempo, tentei assistir uma aula dele. Não consegui saber nem sobre o que ele estava falando. Cai no sono. Ele me pegou dormindo e me expulsou da sala. Que velho mal humorado.
— Ainda bem mesmo que você não é obrigada a assistir, do contrário seria castigada por isso. Eu até que gosto das coisas que ele diz, mas confesso que entendo muito pouco. Quando eu era vivo sempre fingia que entendia tudo para impressionar meus amigos. Quantas vezes eu o usei para meter o pau nas crenças dos outros. Sabe como é uma máxima aqui, um aforismo ali... Jamais imaginei que um dia teria de confrontá-lo cara a cara. Mas ainda assim acho algumas idéias dele interessantes, mesmo que ele me despreze — Terminou, com certa tristeza na voz.
— Olha, deixa esta palestra prá lá e vamos dar umas voltinhas. Aqui, lá no meu dormitório está cheio de novatas!
— Que maravilha! Mas não posso mesmo, Bia. Tenho que atingir a pontuação necessária este semestre. Tenho bastante dificuldade com algumas matérias e estou por pouco para não descer mais um estágio. Se isso acontecer, além de não poder mais te ver, sabe o que significa não é?
— Chibatadas?
— O que? Antes fosse. Com estas eu até me acostumei um pouco depois das inúmeras que levei quando o Sr Voltaire me pegou colando em uma de suas provas.
— Este aí tem fama. Ouvi dizer que ele reprovou vários Bispos e Papas, você soube?
— Pois então, estes homens não estão de brincadeira. Bem, eu vou entrar, está quase na hora e eu ainda tenho de estudar no intervalo para uma prova oral do São Tomás de Aquino e outra do Lutero.
— É, digam o que disserem de nós as prostitutas ainda assim temos algumas vantagens mesmo no inferno. Mas caso você venha a perder muitos pontos, o que acha que vai ocorrer? Não quero que nada de ruim lhe aconteça, você sabe que gosto muito de você Bruno!
— Olha, se seguirem o manual, acho que vão arrancar as minhas unhas dos dedos mínimos.
— Ai, ai, ai! Não fala isso!
— Bom, me deixa entrar então. Depois que eu terminar de fazer as provas no prédio dos falsos cristãos, dou uma passadinha por lá para te ver e conhecer as meninas novas. Se eu não aparecer já sabe que fui à manicure.
— Bruno, não brinca com isso! Espero você lá então. A Daiane está doidinha pra ficar com você hoje, mas já falei que só seu eu deixar, ta?
— Não me tenta, menina, não me tenta.
III

 Bruno Latini já ia para o seu sétimo ano no inferno. Ele não tinha comparecido ao encontro com Bia e nem pudera conhecer as meninas novatas naquela tarde, cinco anos atrás. Nunca mais vira Bia depois que se despediram naquele jardim. Sentia muitas saudades dela. Descobrira que gostava mais dela do que imaginava e a certeza de nunca mais poder encontrá-la era insuportável para ele. Sofria mais com isso do que com todos os castigos e trabalhos que lhe impingiam.
Ele estava residindo agora em condições bem piores. Habitava três círculos inferiores àquele no qual conhecera Bia. Pensava muito nela. Imaginava onde ela estaria agora e apesar de toda a sua dor esperava que ela permanecesse onde a tinha deixado, pois perto do seu atual círculo aquele era uma benção. Tudo isso ele pensava enquanto, deitado no chão duro e gelado de pedra, fitava o teto que não distava mais do que um metro e meio do piso. Era hora de trabalhar. Amparou-se nas duas paredes do cubículo para se levantar. Notava-se que já não tinha unhas em nenhum dos dedos das mãos. Com muito sacrifício ergueu-se o tanto que a altura do lugar permitia, tendo de ficar com o pescoço curvado de maneira que o seu queixo chegava a tocar o tórax.
— Se eu soubesse que o inferno era tão gelado teria trazido uns cobertores — Disse para si mesmo, e conseguiu rir desta conclusão irônica — Bem, é melhor me apresentar logo para o trabalho.
Locomovendo-se com muita dificuldade Bruno Latini alcançou a maçã matinal que o esperava sobre um banquinho de pedra, única mobília da cela. Quando abriu a porta sentiu certo alívio de se libertar daquele local apertado e sufocante embora uma escadaria íngreme lhe aguardasse. Vindo lá do alto chegava aos seus ouvidos o grande falatório e um ensurdecedor ruído de marteladas. Suspirou fundo e começou a subir. No final da escada sentiu uma baforada quente da brusca mudança de temperatura e viu todos os seus companheiros de infortúnio trabalhando. Quando estava prestes a cair em novas reflexões sentiu um forte empurrão do chefe das obras que lhe entregou uma pesada picareta enquanto gritava.
— Vamos Latini, ainda esta mastigando a sua maçazinha, seu verme nojento! Ao trabalho, ao trabalho, quero este bloco de rocha aí à esquerda partido todo em pequenas pedras até a noite, ou está querendo descer mais um ou dois círculos?
— Não senhor, não senhor — Respondeu Bruno Latini, sem ousar olhar para o demônio chefe da sessão.
Com um grande esforço ele conseguiu erguer a picareta e começou a golpear o enorme bloco.
— Isso mesmo Latini, é como eu sempre disse, o que não te mata te fortalece!
— Olá Sr Nietzsche. Ah, não sei não, a coisa está muito feia pro meu lado. Às vezes penso que não vou agüentar, sinto uma fraqueza extrema e imagino, sonhando acordado, que estou morrendo. Uma fagulha de esperança brota então em mim, mas se esvai um segundo depois quando lembro que já morri, que isso tudo aqui é pela eternidade, e que ela demora muito. Penso que este é o pior dos castigos, estes lampejos de ilusão que nos fazem esquecer por segundos que não temos mais a morte para nos livrar.
— Cuidado Latini, não vai começar a filosofar demais. Olha só onde isso me trouxe! Mas cá entre nós, não acho que tudo esteja perdido não, sabe? Ainda acredito que vamos retornar ao princípio de tudo, que todas as coisas, todos os eventos vão se repetir eternamente de modo idêntico, então nós ainda...
— Ora Friedrich, deixa o coitado em paz!
— Paz, Dr. Freud, no inferno?
— Pelo menos deixe que ele desabafe, fale o que está sentindo...
— O Doutor não se emenda, não é? Está aqui na merda e ainda quer fazer uma sessãozinha de psicanálise.
— Senhores, parem com isso, por favor. Olha o demônio chefe logo ali. Vamos trabalhar, vamos trabalhar.
— Vocês sabiam que as pedras que saem destes blocos que a gente quebra aqui, são levadas para outra sessão, fundidas, novamente unidas e as trazem de volta para serem de novo quebradas por nós?
— Brinca não, Sigmund.
— É verdade Friedrich, é o eterno retorno, ah, ah, ah!
— Palhaço.
— Mas não é brincadeira não. Bruno, já faz quanto tempo que você está neste círculo?
— Acho que tem uns três anos. Contando da forma que eu sei, pelo calendário dos vivos.
— Então pelos meus cálculos você já deve estar quebrando o mesmo bloco pela terceira ou quarta vez. Pelo menos eles nos deixam um pouco de ironia pra gente ter alguma diversão, não é?
— Olhem, aí vem o Karl chegando com o carrinho de mão para encher. Diga lá Marx, quais as novas?
— Camaradas, tenho uma bomba prá contar. Vai causar uma verdadeira revolução. Mas por enquanto é segredo, tudo altamente sigiloso, não pode vazar de maneira alguma.
— Fala logo! — Disseram os três ao mesmo tempo.
— Olha, o Charles me disse...
— Que Charles? O Darwin?
— Sim, sim.
— Quietos! Deixem-no contar — Censurou Nietzsche.
— Pois então, ele me falou que viu um documento aí que mostra que as coisas no Paraíso estão por um fio.
— Como assim? O que isso tem a ver com a gente? — Perguntou Bruno Latini.
— Calma. O Charles tem uns contatos. Tem acesso a alguns Bispos e Papas que estão aqui, e estes conseguiram o documento com uns capetas que tem amizade com uns anjos lá do Céu. Darwin tem alguma intimidade com estes eclesiásticos por causa do fato de a Igreja Católica, nestes últimos séculos, ter aceitado a teoria da evolução, devido a interesses políticos, para arrebanhar mais fiéis, conchavos, não importa. O fato é que os demônios chefes daqui aproveitam isso para castigar as duas partes de uma vez. Eles fazem com que Darwin e estes religiosos fiquem discutindo a evolução infinitamente, enquanto são açoitados. O coitado do Charles perdeu tanto a cabeça uma vez que se esqueceu de onde estava e tentou cometer suicídio. Bem, mas o que interessa, é que num intervalo dos castigos o Giovanni Pacelli...
— Quem? — Perguntaram de novo os três.
— O Pio XII, lembram dele? Pois é, ele lhe entregou um documento que veio do Céu, é oficial, tem até o selo “INRI”.
— E o que é que tem neste documento? — Novamente perguntaram juntos.
— É um longo relato de que não está dando para sustentar as coisas lá no Paraíso, devido à falta de intelecto por lá.
— Eu sabia, eu sabia! — Comemorou Freud.
— Pois é. Como o negócio do cristianismo acabou que era verdade, parece que os únicos que acreditavam em tudo aquilo, sem nenhuma restrição, sem nenhuma dúvida, eram uns poucos pobres crentes que nunca leram nada na vida além da Bíblia, e mesmo este livro eles só interpretavam da forma que os padres ou pastores das igrejas ensinavam que era o certo. Pelo que estou sabendo todos os líderes religiosos de todas as denominações cristãs estão por aqui, então o Céu está desabando. A turma que está lá não consegue ter uma única idéia, não sabem conversar sobre nada sozinhos, não são capazes nem mesmo de usufruir dos privilégios que eles têm sem terem de ser conduzidos a estes por um dos três.
— Quais três? — Perguntaram.
— Ora, quais três. A trindade. Deus, Jesus e o Espírito Santo. Mas o caso é que como sabemos agora, por mais absurdo que esta idéia possa nos parecer, estes três são um só,  não estão, ou não está, dando conta do recado, de lidar com tanta estultícia, estão esgotados.
— Bem feito, bem feito! — Comemorou Nietzsche.
— Mas o que mais tem neste documento? — Perguntou Bruno Latini.
— Aí é que eu queria chegar. Eu não li, mas Darwin leu e me disse que é certeza que todos nós seremos reabilitados. A maioria vai sair daqui!
— Não é possível! — Quase gritaram os três juntos.
— Sim, é a pura verdade, parece que a idéia é acabar com todos os círculos mais altos, vão deixar só os dois últimos, os mais profundos, talvez apenas o último. Só para os assassinos, estupradores, terroristas, pedófilos, esta corja toda.
— Então temos esperança de sair daqui — Concluiu Bruno Latini.
— Que esperança, o programa já teve início, até já começou a desocupação nos círculos superiores. São favas contadas. Questão de semanas, talvez meses, o que é isso perto da eternidade? Aí todos vão ser beneficiados. Ateus, agnósticos, praticantes de outras religiões que não faziam nada de mal. Todo filósofo, quer tenha ou não escrito qualquer coisa contra a fé cristã, todos estaremos livres! Até mesmo grandes líderes religiosos que não acreditavam de verdade. Mas parece que neste caso só aqueles muito preparados, cultos. Basicamente os do catolicismo, alguns protestantes do alto escalão e os rabinos. Acho que a idéia é passar um sabão nesta turma e aproveitar os seus inúmeros conhecimentos teológicos para instruir os outros que antes não acreditavam. Sendo assim aquela turma de pastorzinhos charlatões, treinados para manipular e arrancar dinheiro dos pobres, e que têm um intelecto igual ou pior do que os dos crentes que já estão no Paraíso, vão ter de passar mais uns tempos por aqui estudando para melhorar o nível intelectual.
— Maravilha! Então é a anistia!— Comemoraram.
— Ampla, geral, e quase irrestrita.
— Esperem um pouco. Nós vamos direto para o Paraíso ou temos de passar pelo Purgatório? — Perguntou Latini.
— Paraíso direto. Parece que neste caso aí os protestantes estavam certos. Nunca existiu Purgatório, não é Bíblico pelo que eu soube.
Bruno Latini começou a sentir novamente aquela fagulha de esperança que tivera algumas vezes quando esquecia que já estava morto e pensava no descanso que a morte lhe traria. Mas desta vez esta esperança ao invés de sumir, só fez crescer e crescer. De repente ele se lembrou de Bia.
— Sr Marx, e as prostitutas, como elas ficam?
— Elas entraram na lei Maria Madalena, anterior a este documento, pelo que me consta já estão liberadas. Como o círculo que estavam é bem acima do nosso já devem ter ido todas para o Paraíso.
— Então eu vou reencontrar Beatriz!
— Claro que vai, e todas as outras meninas.
— Eu amo Beatriz, não quero saber de outras mulheres.
Freud, Nietzsche e Marx, apoiados nas picaretas e na pá, sorriam e olhavam com ternura para o apaixonado Bruno, até que ouviram o grito de um capeta capataz e sentiram o chicote arder no lombo.
— Trabalhem ordinários, trabalhem!
Todos começaram a trabalhar animadamente, golpeando a rocha e recolhendo as pedras. O capeta não podendo entender o largo sorriso de satisfação que repentinamente se estampara nos seus rostos, se limitou a se retirar resmungando.
— Filósofos malucos.







UM APRENDIZ DE PENSADOR


Para Marco Antônio Rosestolato

I

          Chamar o personagem de herói pode ser considerado exagero para quem não o conheceu. A palavra está envolta em uma áurea de significados elevados e associada a eventos grandiosos. Mas no mundo existem inúmeros heróis obscuros. Alguns realizam também grandes feitos, embora não sejam ações que carreguem a exuberância de um acontecimento épico. Quantas pessoas ocultas pelo gesto incógnito não são responsáveis pelo minimizar de muitos sofrimentos dos seus semelhantes, e não querem maior reconhecimento do que as suas próprias consciências tranqüilas por participarem de alguma ação de valor para mitigar a dor humana. Estes anjos invisíveis à opinião popular levam suas vidas conforme reza a admoestação de que não deve saber a tua mão esquerda o que é praticado pela direita. Mas não é este tipo de herói que esta história apresenta, e, embora não possamos concluir daí que nosso personagem é insensível às ações caridosas, podemos afiançar que ele praticou e pratica outro tipo de heroísmo. Anda pelo mundo, atende por nome de gente e inscreve no dia a dia, na vida comum e cotidiana, a sua marca na circunscrição limitada do seu mundo e nas mentes e nos corações daqueles que compartilham com ele uma época, quando, através do seu intelecto e de seu discernimento, consegue transformar idéias, mudar interpretações e corrigir o pecado da imposição, ao abrir uma porta que alguém julgava lacrada até o fim dos tempos.
          Soares Totol era o único filho de um casal comum, com trabalhos comuns e idéias comuns. Desde muito cedo as impertinentes idéias comuns foram instiladas gota a gota na vida daquele menino. Isso era feito não de uma forma maldosa, mas com um verdadeiro sentimento de amor e de dedicação pelo filho. Não havia nada mais valioso que uma mãe pudesse ensinar ao seu filho, do que aqueles valores com os quais ela havia sido criada, valores que ela mesma havia aprendido dos seus pais e os pais dela, por sua vez, dos seus. Muitas coisas são úteis nestes ensinamentos tradicionais. Aprende-se a ser cordial, a não falar demasiadamente alto quando seu pai está tirando uma soneca após o almoço e antes de voltar ao rude e prático trabalho de metalúrgico. A vida de um metalúrgico é invariavelmente baseada no real. Levanta bem cedo, toma o café, às vezes ouvindo o rádio ou discutindo miudezas com a esposa. Então vai para a fábrica, onde se traça e corta as chapas de metal, automaticamente, com uma trilha sonora de marteladas e ruídos de máquinas operatrizes, a qual, no futuro, cobrará da audição os juros deste uso excessivo da faculdade auditiva. No final do dia, é casa, banho, jantar e telenovela, mas o sono vem logo, pois o corpo se recente dos esforços do dia. Não raras vezes este homem de família, correto e simples acostuma-se a ir deixando à mulher, à mãe, a tarefa de cuidar praticamente sozinha da educação do filho, como algo exclusivamente de interesse dela, somente intervindo quando é solicitado a fazer alguma correção mais austera. Não havendo muita ação a vida se desenrola seguindo o movimento natural da inércia, até que alguma força exterior venha atuar sobre ela.
          Seguia desta maneira a vida do jovem Soares Totol. Tudo dentro de um esquema peculiar ao da maioria das famílias semelhantes à sua. Escola, lições de casa, brincadeiras comuns à idade, Igreja, televisão, algumas doenças corriqueiras, parentes, vizinhos. Um universo limitado, e porque limitado, tranqüilo, embora tedioso.
          No entanto a mãe de Soares Totol se sentia muito bem, pois via em tudo isso uma certeza de continuidade das coisas, e a continuidade sempre era o mais seguro para ela, pois ela a conhecia muito bem havia muitos anos. Eram velhas amigas, que se sentavam juntas para tricotar o tempo com fios imaginários desenrolados de um relógio invisível, mas que andava sempre acertado.



II

          Naquela manhã Soares Totol, levantou-se e saiu de casa para mais uma vez ir à aula de catecismo. As informações que lhe davam nestas aulas eram muito estranhas para ele. Careciam de um sentido lógico que apesar da pouca experiência da criança de onze anos que ele era, esta falta de critério lhe gritava alto e em bom som que as coisas ouvidas à professora de catequese não se distinguiam em nada de algumas histórias de dragões e fantasmas que já havia assistido na televisão. Mas traziam um peso horrendo com elas, que era muito maior que qualquer história fantástica. Pretendiam estes outros contos estranhos, cobrarem-se verdadeiros e junto com tal pretensão ordenavam que se cressem neles sob pena de muitos infortúnios na vida e mesmo após a morte. A morte para um menino de onze anos era algo quase tão distante e irreal como as aventuras de dragões e deuses. Mas ter a vida repleta de obstáculos que podiam ser criados por uma indisposição em dar crédito ao que era ditado como verídico e imutável pela catequista, era algo que ele tentava evitar fazendo um esforço sobrenatural para negar as suas dúvidas.
          Mas naquele dia ele ousou se não descrer, pelo menos dar um descanso à sua mente, e, desviando-se do caminho da Igreja, como uma ovelha que escapa ao aprisco, tomou o rumo do centro da cidade. Perambulou por algumas horas num misto de alegria pelo prazer do passeio e o medo de que algum olho cósmico o estivesse observando, e algum dedo gigante do Céu o apontasse. Num momento de quase terror viu na sua imaginação uma mão enorme pegar de uma pena, mergulhar a sua ponta em um tinteiro e com um traço reto como deve ser a caligrafia divina, riscar com um movimento rápido e irado o nome de Soares Totol do Livro da Vida. Sacudiu depressa esta imagem perturbadora de sua cabeça e retornou ao burburinho dos transeuntes. Foi quando se deu conta de que estava bem em frente ao prédio da Biblioteca Municipal, no qual ele nunca havia entrado. Sabia que dentre os lugares proibidos pelos ensinamentos do catecismo, como as festas com bebidas alcoólicas, cinemas com filmes impróprios e determinados programas de televisão, entre outros, a biblioteca não estava incluída, e tinha mesmo a certeza que todo menino bom aos olhos de Deus devia ser também um bom aluno na escola. E é claro que bons alunos deviam ser próximos aos livros. Era um meio de amenizar sua infração. Pagaria a sua falta na aula de catequese com algum tempo de estudo na biblioteca e, quem sabe, podia ter a sorte de assim acalmar os ânimos do Senhor e Ele não riscava realmente o seu nome do livro dos escolhidos. Foi assim que Soares Totol entrou pela primeira vez em uma biblioteca.
          O espetáculo que se apresentou diante dos seus olhos, do seu olfato e do seu tato, foi algo que ele jamais teria imaginado e nunca experimentara antes. Começou a percorrer um labirinto de estantes repletas de livros dos mais variados tamanhos, cores e espessuras. Não podia nunca decidir qual livro pegar, até que seus olhos se fixaram em um ponto. Era um volume vermelho, não muito grande, encadernado em couro e trazia em alto relevo na capa, a figura de um brasão com flores, espadas cruzadas e estandarte. Não tinha nada escrito por fora do volume nem nas capas e nem na lombada. Assim que abriu o livro deu com a figura do mesmo brasão no centro da página amarelada pelo tempo, a qual era marginada por um motivo floral entremeado por pequenas reproduções da figura do brasão em desenhinhos menores e na cor verde. Na próxima página já não havia o brasão central, somente a ornamentação da margem da folha e no centro desta o seguinte título: “O Ensinamento de Arton Camion”. Levou o livro consigo até a mesa da bibliotecária, a qual depois de fazer o cadastro do garoto na biblioteca lhe informou que o podia levar emprestado por quinze dias a contar daquela data.
          Logo que deixou aquele prédio procurou uma praça que gostava muito de ficar por ser ela muito arborizada e tranqüila. Abriu o livro no meio e encostando-o às narinas sentiu um cheiro delicioso que parecia lhe lembrar alguma coisa que ele não podia definir ou precisar o que era. Fechou-o novamente e com uma lentidão ritualística foi abrindo de novo o volume desde a capa. Leu em voz alta o título — “O Ensinamento de Arton Camion”. Sem se conter mais avançou mais uma página e leu a narrativa que se segue:


III
         
          Há centenas de anos atrás, havia, em uma terra muito distante de todos os lugares que possamos imaginar um Rei muito poderoso. O seu Reino era tão vasto que se poderia viajar nos navios por todos os oceanos e por um tempo tão longo que pareceria ser infinito. O viajante que pretendesse empreender tamanha aventura e tentasse sair dos domínios daquele reino, certamente pereceria antes de concluir a viagem, pois envelheceria mais rápido do que chegaria aos confins das imensuráveis terras regidas por aquele monarca. Contentavam-se, ou pelo menos se resignavam, pois, todos os habitantes daquele reino. Qualquer daqueles súditos não tinha outra opção senão viver dentro das infindáveis propriedades de Sua Majestade, o rei.
          O monarca era orgulhoso de seu ilimitado poder e seguro de que nunca ninguém poderia partir e deixar os vastos campos, os inúmeros desertos e as grandiosas e densas florestas que lhe pertenciam. Fazia assim aquele rei, tudo o que lhe dava vontade e que lhe trouxesse algum divertimento e prazer. Um fato muito curioso que todos os habitantes daquele reino observavam e iam contando uns aos outros e passando esta informação às outras gerações, até que em cada recanto do imenso reino já se sabia, era que o seu soberano, embora aparentasse uns oitenta anos e ostentasse uma longa barba branca e sobrancelhas grossas, não parecia envelhecer mais e, conservando a mesma imagem há muitos anos, ia enterrando todos à sua volta sem que ele pudesse ser tocado pela doença e pela morte.
          Já havia se casado mais de vinte vezes e a cada novo matrimônio mais jovem era a donzela escolhida. Mesmo enquanto qualquer de suas esposas ainda vivia, não deixava o rei de usufruir dos incontáveis privilégios de sua posição entregando-se aos mais diversos prazeres sensuais com outras mulheres que ele tinha sempre à sua disposição, pois bastava desejar uma jovem súdita, fosse ela filha de um pobre camponês ou de um nobre da corte, que jamais recusaram a ele a satisfação de seus desejos. Na primeira noite após a ordem do Rei, estava o objeto de seu desejo a aquecer-lhe a cama e o corpo.
          Tivera já o monarca uma enorme linhagem de descendentes, mas nenhum dos filhos sobrevivera a ele, e, embora gostasse da companhia dos meninos nas caçadas, nas bebedeiras e nas inúmeras festas regadas a muito vinho, música e mulheres, que aconteciam com freqüência nos seus castelos, quando lhe morriam eles, o rei parecia levar o corpo à tumba com a mesma indiferença com que recebera o rebento ao sair das entranhas da progenitora.
          Outra coisa estranha era que o rei não possuía nome. Chamavam-no somente “rei”, “majestade”, “alteza” ou “Senhor”, mas nunca ninguém soubera o nome do rei. Diziam que era um nome tão poderoso que não se podia nem pronunciar. Apesar disso ele gostava de nomear os seus filhos, mas chamava-lhes sempre por nomes retirados dos fenômenos naturais, como, “chuva”, ”trovão”, “vento”, “relâmpago”. Invariavelmente, no entanto, todos eles sucumbiam enquanto o monarca permanecia firme, e se algum desgosto sentia nisso não o demonstrava, mas antes parecia se sentir bem a cada filho enterrado, por parecer que isso vinha a comprovar que ele estava imune às garras da morte.
             Numa manhã ensolarada, passeava o rei por um bosque, próximo ao seu castelo principal, montado em um de seus cavalos, quando viu a jovem mais bela que já havia conhecido. Corpo esbelto, olhos verdes, cabelo louro e longo, cacheado, que brilhava como fios de ouro ao sol. Lábios sensuais e vermelhos como as cerejas maduras. Seios alvos e rijos. O monarca ficou enlouquecido com uma visão tão extraordinariamente bela. Ele que tivera todas as mulheres mais bonitas do reino, jamais se deparara com a imagem da perfeição que reconhecia agora pela primeira vez naquela menina. Aproximou-se da jovem que não devia contar mais do que quinze primaveras e falou secamente:
          — Qual o seu nome, menina?
          — Liare.
          — Pois esteja nos meus aposentos, hoje, ao anoitecer, naquele castelo que pode ver ali, incrustado naquele rochedo.
          Sem esperar nem mais um segundo ele fustigou o grande cavalo branco e subiu por uma trilha que conduzia à entrada do castelo.
          Quando entardeceu o monarca aguardava com apetite voraz a chegada da jovem que serviria para mais uma vez ele satisfazer seus instintos, assim como já acontecera inúmeras outras vezes por incontáveis anos. Porém caiu a noite e a jovem não apareceu. O rei irado por tamanha afronta, não esperou nem mesmo raiar o dia e já ordenou aos seus exércitos que a fossem procurar, com ordens para causar destruição e flagelos por onde passassem. Violassem as mulheres, matassem os animais, tomassem as crianças aos seios maternos e as transpassassem com as espadas. Queimassem aldeias e não poupassem velhos, jovens, homens ou mulheres, até que a menina viesse até ele por vontade ou por força. Mas que nela não tocassem em um fio de cabelo, pois quem a isso se atrevesse, pelas suas próprias mãos conheceria a mais horrível forma de morrer.
          Seguro de que ao presenciar tamanha destruição causada pela sua desobediência ao rei, a jovem viria prostrar-se aos seus pés implorando perdão e oferecendo a ele a sua pureza e a sua própria vida para que delas dispusesse da forma que melhor lhe aprouvesse, o soberano julgou que bastariam duas ou três aldeias incendiadas e tudo estaria resolvido. Com um sorriso malévolo foi se reclinar em seu confortável leito.
          No entanto a destruição ia se acumulando, se empilhavam mortos formando montanhas nas campinas. Rios tingiam-se de vermelho do sangue derramado e o clamor e os gritos das mães por seus pequenos que foram passados no fio das espadas ecoavam noite adentro fazendo coro com o uivo das lobas que também tiveram despedaçadas as suas crias pelos machados afiados e suas moradas ardiam em labaredas gigantescas na mata.
          Depois de mais de cinco anos de destruição apareceu nos portões do castelo principal do rei um jovem homem que não encontrando guardas, pois todos ou fugiram ou ainda lutavam de forma irracional pelo fanatismo que o monarca lhes inspirava, foi entrando até que chegou aos aposentos Reais. O Rei ao ver o estranho entrar, levantou-se com dificuldade, e lançou-lhe um olhar soberbo e perscrutador. Todavia o monarca era agora apenas a sombra do que fora. Aparentava estar doente e muito fraco, e juntando as poucas forças que lhe restavam conseguiu falar:
          — Que quer você, homem?
          — Nada, majestade. O rei nada pode me oferecer.
          A audácia desta resposta acordou antigos orgulhos naquele resto de realeza e fez com que ele recobrasse ânimo a ponto de quase conseguir gritar:
          — Posso tudo. Posso lhe dar tudo, assim como posso, se eu o desejar, tirar-te tudo, até a sua vida!
          — Tudo já me foi tirado, meu rei, e nada restou do seu imenso reino, pois vossa majestade tudo destruiu. Minha aldeia foi queimada, todos os animais e todas as plantas que embelezavam e nutriam foram dizimadas pelo capricho do seu desejo insano e impuro.
          O rei não podia crer nos seus próprios ouvidos. Jamais alguém havia ousado falar-lhe daquele modo. Tal era sua surpresa que chegava a suplantar a sua ira, e não acabava de decidir se investia contra aquele homem ou continuava a ouvi-lo atirar na sua cara toda a sua culpa, todo o seu ódio doentio. Afinal o rei, cambaleando e afastando-se do desconhecido com um sentimento entre terror e ira, perguntou quem era ele e qual era o seu nome.
          — Chamo-me Arton Camion, majestade, e sou o filho que lhe sobreviverá. Sou aquele que riscaste o nome do seu livro para extirpar-me da sua genealogia, pois no fundo sabia da minha existência e do meu exílio.
          — Meu filho? Impossível, todos os meus filhos estão mortos. Todos acabam. Só eu permaneço para sempre, somente eu sou eterno!
          — Enganas-te, meu rei e pai. És tão mortal como qualquer outro, como todas as criaturas, como todos os outros reis que viveram antes de ti, e também se julgavam imortais. Tu também, como eles, morrerás. A única diferença é que ainda não havia ouvido isso pela boca do próprio filho que gerastes pelo simples prazer carnal e que queria também morto pela sua indiferença. Mas eu sobrevivi a tua crueldade e ao teu descaso, a toda a tua ira e a toda a tua destruição. Exilei-me e escolhi para mim meu próprio nome depois que me apartei de teus olhos invejosos. Tenho por esposa a mais bela e a mais pura das mulheres. Aquela que desejastes com tamanha lascívia a ponto de dizimar todos os seres e todas as coisas. Mas não a pudestes tocar. E agora terminará tua obra destruindo-te a ti mesmo.
          — Não, não pode ser. Você mente maldito!
          — Então olha.
          E indicando para o rei a porta por onde havia entrado, afastou-se um pouco para o lado e o soberbo monarca viu a maravilhosa jovem que ele havia encontrado anos atrás. Ela não envelhecera um só dia. Estava perfeita como naquele dia que fora vista pelo rei. A visão da jovem operou um efeito espantoso no monarca, que imediatamente tentou avançar até ela. Mas a cada movimento ele ia envelhecendo cem, duzentos, trezentos anos, e seu corpo murcho e sua pele seca iam se desfazendo no ar como se fossem consumidas por mágica, até se tornar em um esqueleto partido no chão, que por sua vez continuou se deteriorando até transformar-se apenas em pó, um pó cinza, que foi se diluindo, diluindo em pequenos raios luminosos, que entravam vagarosa e preguiçosamente pelos olhos semicerrados de Soares Totol, que ainda permanecia com a cabeça repousada sobre o livro de catecismo, a qual só começou a erguer ao ouvir a velha professora de catequese o repreendendo por ter dormido durante a maravilhosa narrativa que ela havia feito sobre o reino do Senhor Deus Todo Poderoso e sobre a Sua Imortalidade.











A CAMISETA

Para Maria A. Caldonazzo

I

          Qualquer outra pessoa poderia achar que uma simples camiseta não merece o trabalho de se contar uma história onde coisa tão vulgar e cotidiana apareça como elemento de destaque. Afinal se existem objetos que primam pela falta de interesse que possam despertar certamente a camiseta é um deles. É claro que dependendo do motivo nela estampado, forçoso é admitir que cause a camiseta, mais emoção do que uma caneta ou um copo descartável. Mas é um interesse momentâneo, efêmero. Logo que cruzamos com quem veste uma camiseta que traga algo ou inusitado ou clássico, nosso olhar atenta para o fato, mas em poucos segundos nosso cérebro já misturou a imagem observada a outras idéias, que por sua vez engendram outras que diluem qualquer tema na complicada e comum atividade de estarmos junto a outras pessoas as quais não escolhemos para nosso convívio e exercendo atividades que nos são impostas pelo dia-a-dia. Maria não acharia isso. Quem é Maria? Não acharia o que? Ora, Maria não pensaria ser insignificante que o assunto da história fosse uma simples camiseta. E não faria isso por um motivo muito justo. Tudo se passou com ela. Ela era a dona da camiseta.
          Naquela manhã ao deixar aquele prédio e entrar no táxi, vestindo apenas a sua camiseta, tendo debaixo dela os seios nus, ouviu essa do motorista:
          — Todo dia sai pelo menos um defunto desta delegacia.
          Estas palavras deram algum alívio a Maria por sentir ela que sobrevivera àquele vaticínio de taxista de cidade grande, que pode ser comparado a uma espécie de oráculo grego. Não pode deixar de responder ao comentário de forma mecânica, com um: “graças a Deus!”

II

Acontece que estávamos em uma época em que todos eram considerados suspeitos até provarem o contrário. No final da tarde anterior àquela manhã que ela tomara o táxi, Maria estava caminhando sozinha pela orla da praia vestindo calça jeans, sua camiseta, e nós pés, tênis de meia idade. Mas Maria era jovem. Tinha por bagagem de vida alguns namoros, muito Rock’n roll e vários sonhos. Aliás, se ela caminhava agora pela praia era porque havia se desiludido, mesmo que momentaneamente, de algum relacionamento, descansava os ouvidos e a cabeça do Rock e se entregava aos devaneios. Tudo estava tranqüilo até ela ouvir uma voz ordenando:
          — Vamos ver. Vai mostrando os documentos aí, menina.
          Maria não estava com nenhum documento. Não tinha destas cautelas de metrópole. Morava em cidade pequena do interior e viera passar um feriado prolongado no Rio de Janeiro. Deixou tudo no hotel no qual estava hospedada. Estadia curta. Quatro dias. Dois já tinham ido embora e ela não queria deixar a cidade maravilhosa sem ver o sol se esconder no oceano. Quem se lembraria de trazer documentos para realizar atividade tão inocente.
          — Então não tem documentos, não é? Mora no interior... É Estudante. O que você acha Juvenal?
          — Não sei não, prá mim isso está muito mal contado. Sem lenço e sem documento, andando na praia, acho que tem encontro marcado com algum grupo.
          — Pois é, e essa camiseta vermelha aí! Isso deve ser algum sinal.
          — Não senhor, eu...
          —Tem conversa não, vamos entrando no camburão, garota, vai até a delegacia para maiores averiguações.


III

          — Estudante. Sei. Igual a você nos encontramos muitos. Comunista, não é? Pode falar logo!
          — Não senhor, eu não mexo com estas coisas não. Não gosto e nem entendo de política. Eu estudo letras...
          — Ta aí. Livros. Garanto que gosta dos russos, não gosta? E essa camiseta vermelha? Porque não pintou logo a foice e o martelo?
          — Doutor eu saí prá dar só uma voltinha, peguei qualquer roupa, nem reparei na cor, o que tem...
          — Fica sabendo que não gostamos de “vermelhos” por aqui não. Tira essa merda.
          — Mas senhor delegado eu...
          — Tira a camiseta, porra! — Aí Juvenal, até que a “vermelhinha”, tem uns peitos bonitos, não é? — Abaixa os braços, menina, aqui é igual consultório médico. Beleza!
          — Juvenal, dá essa jaqueta que está aí prá moça e recolhe no xadrez, até maiores esclarecimentos.
          — Seu delegado, por favor, eu posso buscar meus documentos no hotel e trago aqui para...
          — Cala a boca! Hoje é “xilindró”, amanhã a gente conversa. Põe ela junto com a “Marta Rocha”, e nada de safadeza.

IV

          Andando pelos corredores úmidos e cinzentos da cadeia, Maria ia chorando baixinho, tentando segurar para não deixar o guarda nervoso. Sua situação parecia desesperadora, ia pensando. Pensava na sua casa em Minas, na sua mãe, irmãos, pai, será que nunca mais... Nem queria imaginar. Enquanto seguia escoltada pelo policial, ia passando em frente às celas masculinas e ouvindo os presos:
          — Oh, gostosa!
          — Vem cá com o papai, vem.
          — É só para o Juvenal, moçada.
         — Juvenal, tem um cigarro aí?
          O guarda parou por uns segundos em frente a uma das celas e entregou dois cigarros para um senhor mais velho que dividia o cárcere com mais cinco ou seis que como ele também não haviam se manifestado com a passagem de Maria. “Marta Rocha” era uma negra mirrada que não tinha nem bunda debaixo dos panos das calças de tergal. Quando ela viu entrar Maria sorriu de maneira amistosa mostrando duas falhas na arcada dentária.
          — Olha menina, eles sempre fazem isso. Já trouxeram muitas iguais a você prá cá. Passam um susto, mas deixam ir embora de manhã cedo. Não chora não, você vai ver. Amanhã você sai.
          — A senhora acha?
          — Senhora ta no Céu, meu bem. Tenho certeza. Aí quando sair você me faz um favor. Vai até o Morro dos Macacos, lá na Vila Isabel, e procura um negão lá chamado Braz. Conta prá ele que eu to aqui. Mas só prá ele viu? Se tiver um cara gordo, loiro, perto dele você não fala nada, não fala nada!
          Estas últimas palavras ela gritou de tal forma que fez com que os presos de outras celas protestassem contra o barulho:
          — Vai gritar dentro da boceta da sua mãe, biscate!
          — Vai tomar no cu sua bicha! Você me paga, espera eu contar pro Braz!
          — Como o cu dele e o da tua mãe!
          — Ordinário!
          Maria ia se encolhendo num canto assustada e recomeçava a chorar. As paredes da cela estavam geladas e a jaqueta que deram para ela vestir cheirava vômito.
           — Tomaram minha camiseta, só porque era vermelha — dizia entre lágrimas.
           — São uns idiotas estes “paus mandados” — respondeu “Marta Rocha”— Enquanto gritava enfatizando as últimas palavras: — “Paus mandados!” Devolvam a camiseta da menina!
          Maria pedia para a negra não fazer isso. Temia que pensassem que ela era mesmo comunista.
          — Deixa, deixa, por favor.
          — Fica com medo não, querida. São uns frouxos, abusam porque você mostra medo. Mas são uns cagões — Cagões! Cadê a camiseta da moça, cagões!
          — Maria desesperada, implorava para que a companheira de cela parasse de gritar. No corredor, vindo de outras celas novos protestos:
          — Vem chupar meu pau, prá ocupar a sua boca, piranha! Deixa que vou pedir pro guarda para eu ir aí vestir a camiseta na mocinha!
          — Você vai é ficar sem essa porcaria de pinto quando o Braz passar ele no canivete!


V
        
          Seu Geraldo era taxista há muitos anos. Viera do Ceará, se casou no Rio, e tinha quatro filhos pequenos. Trabalhava muito para dar uma vida melhor para os meninos, como sempre dizia: “estudo e religião, não podem faltar na vida da gente”. “Eu não pude estudar, mas graças ao bom Deus, minha mãe e meu pai me ensinaram a ter fé e andar direito”. Abriu a porta do guarda-roupa para escolher o que vestir naquele dia. Olhou para as sua roupas que eram poucas, mas todas muito bem limpas, arrumadas, passadas a ferro. Junto com a sua camiseta do Flamengo estavam penduradas as outras que ele usava somente quando tinha alguma folga do trabalho. Camiseta para ele só em casa. O trabalho pedia camisa e gravata. Até palitó, às vezes, apesar do calor no Rio. Enquanto dirigia gostava de acompanhar pelo rádio, e a noite no jornal da televisão, as notícias. Mesmo reclamando às vezes do custo de vida, achava que o Governo ia bem e fazia o que estava ao seu alcance. Se pudesse ele teria sido militar, do exército. Achava bonito nas Paradas, o desfile dos soldados, a pé ou a cavalo. Sentia orgulho de ser brasileiro e católico. Por isso também, e não só por formalidade, tinha o hábito e o cuidado de escolher o que vestir. Mesmo as camisetas que vestia para ficar em casa, ou as de dormir, tinham de ser adequadas. Nada de dizeres ou imagens impróprias. Cores sóbrias. Nada regalado. Vermelho, nem pensar, era proibido em sua casa. Para ele e para a família. Está certo que na sua camiseta do Flamengo tinha vermelho. Mas tinha também preto: “rubro negro”. Estas duas palavras associadas diluíam o poder esquerdista da primeira e revestia a expressão com uma áurea de patriotismo. Acabou de se vestir e foi até a cozinha tomar o café. Lá encontrou sua esposa nos seus afazeres comuns. As crianças já haviam saído para a escola. Seu Geraldo fez o sinal da cruz e depois tomou seu café com leite, comeu seu pão com manteiga e saiu para o trabalho balbuciando para a mulher algum som de despedida quase imperceptível.

VI

          — Então o negócio é o seguinte, mocinha — Dizia o delegado para Maria que estava parada de pé em frente a sua mesa — Você vai até ao hotel, pega os seus documentos e traz aqui até amanhã de manhã, entendeu? Se não aparecer eu vou caçar você nessa cidade inteira e te enjaular aqui até você apodrecer. Toma, veste essa porcaria. E quando voltar aqui não me aparece com isso, vem com outra roupa e joga essa merda no lixo — Dizendo isso atirou a camiseta no rosto de Maria, que se virou e trocou a jaqueta pela camiseta o mais rápido que pôde.
          — Agora some da minha frente!
          Quando Maria respirou o ar fora daquele lugar, deu um suspiro profundo de alívio. Resolveu tomar um táxi. No hotel tinha dinheiro para pagar. Assim, impulsionada pela satisfação de ter se livrado de tudo aquilo, foi que respondeu automaticamente ao comentário do motorista do táxi. Este, não deixou de fita-la pelo espelho retrovisor, com um olhar de censura, sem entender, como uma pessoa podia dar graças a Deus pela morte de alguém. Mas de gente como ela podia se esperar tudo. Afinal ela estava usando camiseta, e vermelha.







ULTIMATUM



Aquela mesma melodia que todas as tardes escorre da torre da igreja traz inúmeras provocações e carrega consigo todas as dores. Instintivamente engolimos o vento que se extrai da sonora brisa e continuamos a caminhar na tarde que se parece com uma tela. O sol bate incidindo nos telhados que refletem uma claridade amarela entrecortada às vezes por chuva miúda.
Ele sentia tudo isso quando atravessou a avenida para andar por mais uma noite. Passou várias vezes em frente à pequena loja de doces. Não tinha certeza se os dedos que trazia ocultos nos bolsos tilintavam moedas. Mas mesmo assim parou e relanceou olhares para dentro dos vidros açucarados. Subitamente foi atingido por uma luz desconcertante e verde que expunha com cruel veracidade todo o aspecto ridículo que ele julgava possuir, por ostentar naquele brilho uma beleza que emudecia.
A vida para ele tomava então os já conhecidos rumos extremos dentro de sua mente. Tentava correr dos seus próprios sentimentos e o impossível sorria-lhe com ar escarninho ao mesmo tempo em que a esperança o acariciava, como a lhe segredar que tudo era possível.
Passavam das oito horas da noite quando ele penetrou na sala escura onde não podia definir o que via ao redor. Esperou até que seus olhos se reeducassem sentado em uma poltrona e lendo uma legenda que carecia de sentido mesmo falando sobre coisas claras.
Existem impressões que são orquestradas pela memória e que se materializam quando menos se espera ou, quando menos se deseja, por sempre temermos muito os nossos desejos. Novamente ele pôde constatar isso naquela noite quando ousou seguir um instinto e olhar para o que pressentia. Reparou, então, que a poltrona a seu lado guardava uma dimensão oceânica entre ele e aqueles mesmos olhos que divisara na casa de doces. Mas sua ferida agora se agravara, uma vez que o destino corta sempre com uma individualidade cruel personalizando a dor. E isto era causado pelo fato de o brilho da tela que em se chocando contra aquele rosto na platéia definia uma boca de lábios grossos que se iam tornando cada vez mais molhados pelos beijos. As vozes que lhe falavam eram de um idioma ininteligível, mas entrando-lhe pelo cérebro tornavam-se familiares como uma linguagem universal. Resistiu o quanto pode, mas acabou por deixar a sala.
Subia agora os degraus que o levariam invariavelmente ao seu pequeno quarto de hotel. Sua alma pedia por aquelas tardes longínquas, implorava por todas as chuvas, tudo o que pudesse ainda tentar absorver. Porém seu corpo apático relanceava olhares aos quatro cantos do aposento e assim como aqueles reflexos vividos ainda a pouco nas ruas, seus olhos foram obstruídos pelo agudo brilho do aço negro sobre a escrivaninha. A cada passo do relógio a noite se tornava menos promissora. Depois de algum tempo o vento carregou consigo o eco de um estampido metálico que se perdeu nos solitários silêncios da cidade adormecida.
O dia seguinte amanheceu sem chuva. Aos poucos a claridade foi se tornando insuportável. Lentamente o sol refletido escalou as paredes do prédio até se quebrar em um ângulo agudo sobre o assoalho do quarto traduzindo a mais completa solidão ao iluminar o corpo estendido.







A SALVAÇÃO





Na sala de aula os alunos começavam a se acomodar para o início do que seria para Fabinho mais uma tarde de sofrimento.Ele nunca tinha sito bom aluno.Poderia mesmo se dizer que era lerdo e tardo em atividades que para outros eram relativamente fáceis.Havia entre os seus colegas habilidades distribuídas.Pedro era bom na matemática, Paula em geografia e história.No geral, todas as meninas eram melhores alunas que os meninos e se destacavam nos estudos, tanto como se impunham no visual.É claro que tinha as feias, mas eram poucas, duas ou três.Os meninos, porém, teimavam em achar todas horríveis e punham nelas os apelidos mais injustificáveis. Coisas próprias da idade. Fabinho, no entanto, apesar de não ser o mais velho, não se deixava influenciar por estas opiniões e, embora não revelasse que discordava delas, mantinha-se calado abstendo-se de participar das gozações que os colegas faziam com as garotas. Era tímido.E talvez fosse isso mesmo que o limitava também no desenvolvimento escolar.Podia ser o caso de que se fosse ele, mais afoito, mais atirado, e também mais ligado à realidade, conseguisse se desvencilhar de alguns entraves que colocavam obstáculos ao seu aprendizado.Mas ele era um romântico, um sonhador.Vislumbrava durante a aula, um mundo que não existia realmente, nem dentro daquela sala nem fora dela.Em um minuto pensava em conquistar a menina mais bonita da sala, a Débora, talvez salvá-la de algum perigo na saída do colégio, algo que todos ficassem sabendo e comentassem no outro dia, apontando para ele: — “está vendo? Aquele é que é o Fábio, foi ele que...”.Aqui, sua idéia já mudava de direção e ele pensava em vencer o João Tana, o menino mais temido da escola, da sexta série.Nome enigmático que ele nunca chegara a compreender, mas sugeria algo terrível e mau. Imaginava-se a derrubá-lo, dominando-o em uma luta na qual entrava somente para proteger o Thiaguinho, irmão caçula de Débora que estaria sendo covardemente atacado, e pelo que receberia, depois de vencido o inimigo, um beijo da irmã do garoto em agradecimento.Perdido nestes pensamentos ouvia vagamente o zumzumzum da turma, e só atinava realmente com a aula quando ouvia a voz da professora dizendo seu nome em voz alta.
— Fábio, venha até o quadro-negro.
Fabinho, que fora pego de surpresa olhava agora pela primeira vez para a lousa e percebia, para o seu terror, que figurava bem no centro da mesma, a vista de todos da sala, uma enorme e ameaçadora conta de dividir, com nada menos que quatro algarismos fora da chave e três dentro.Estava perdido.Todos os olhos se voltavam para ele, podia ouvir as risadinhas das meninas e via de relance os sorrisinhos de escárnio dos meninos maiores, dos quais ele também era vítima de apelidos e alguns encontrões que levava no recreio.Um deles, o Donizete, tinha o apelidado de “girafa” por ele ser excessivamente magro e ter um pescoço um pouco longo.Esta crueldade tinha um requinte especial quando ele o chamava pelo apelido na frente das meninas.Inexplicavelmente nestes momentos, se uma das bonitas, mesmo a Débora, estava presente, repreendiam o agressor, o que alimentava no menino uma ilusão de que isso podia significar um interesse por ele.Agora, ali na sala, não ousava olhar diretamente para estas meninas, enquanto caminhava em direção ao quadro, por temer encontrar em suas expressões alguma forma de crítica.Parou em frente ao quadro e pegou o giz.Realizava tudo isso o mais demoradamente possível tentando dar tempo de soar a sirene para o intervalo que seria a sua salvação momentânea, e mesmo poderia significar a sua redenção completa uma vez que podia a professora deixar de cobrar a operação no retorno à classe, por não julgar tão importante fazê-lo, por esquecimento, ou mesmo por pressa em passar a outro ponto da matéria.Quem sabe até por misericórdia.A professora, aliás, não era má pessoa, sempre o tratara com educação e dificilmente vinha a perder a paciência com ele.Era uma bonita mulher, bem jovem ainda, talvez mais bonita que Débora, pois trazia um ar maduro, boca mais vermelha, colorida pelo batom, e um porte muito elegante. Sem falar nos seios!Estes ganhavam de longe de todas as meninas da sala.Em algumas ocasiões, quanto ela se abaixava para lhe explicar alguma coisa, ou corrigir algum erro no seu caderno, tinha podido observar de relance aquela divisão que desaparecia misteriosamente no seu decote, e parecia levar a uma região inimaginável.Tudo isso passava por sua cabeça em questão de segundos, não desta forma, mas num amontoado de idéias desconexas que se sobrepunham umas as outras.Quando ele, finalmente fez a primeira vírgula separando os primeiros algarismos que deveriam ser divididos, milagrosamente soou o sinal para o recreio.Estava salvo.Sentia que tudo seria como ele tinha imaginado, ou de uma forma ou de outra se livraria de ter de realizar aquela divisão, a qual nem sonhava por onde começar.
— Depois do intervalo quero que você continue Fábio.
Era o fim. Não poderia resolver a operação.Estaria entregue a zombaria de todos os alunos, à vergonha frente às meninas e à decepção da professora.Queria desaparecer, não tinha ânimo nem para pegar a sua merenda.Também não teria apetite porque passaria todo o intervalo consumido pelo medo do momento de voltar à sala.O relógio da parede aumentara enormemente o seu ruído, como que para adverti-lo de que quatro minutos já haviam se passado de um total de vinte de pausa nas lições.Então percebeu que estava sozinho na sala, algo que comumente não era permitido.Olhou novamente para o quadro-negro e notou que havia uma data e uma numeração do exercício ao qual pertencia àquela divisão.Era a correção de um dever e só agora ele o notara, pois a angustia lhe atordoara os sentidos.Olhou em volta, não havia ninguém.A porta estava fechada e lá fora podia se ouvir uma grande algazarra das brincadeiras do recreio.A professora era realmente uma excelente pessoa, pois lhe dera a resolver uma conta que já constara do dever de casa.Ela não podia saber que ele ainda assim teria dificuldades.Está bem, ela conhecia as suas limitações e tinha então como perceber que ainda assim colocava-o em situação difícil.Mas afinal, o que ela podia fazer?Alguns muitas vezes faziam contas novinhas, ditadas no momento e já era uma mão na roda o que ela tinha feito por ele.Quem sabe, ela não teria mesmo fechado intencionalmente os olhos para sua permanência na sala para que tivesse a oportunidade de perceber isso? Aliás, era bem provável que ela o fizera, não havia que duvidar.Olhou para o relógio, o tempo passava, faltavam apenas dez minutos para o término das recreações.Cumpria ir até o seu caderno e ver o resultado, copiá-lo na palma da mão, e depois discretamente transferir os números correspondentes para o quadro.Devia ser sutil, simular que estava pensando, que calculava o resultado com todos os vai e vens deste tipo de operação matemática.Correu até sua carteira e abriu na página do dever que era de dois dias atrás.Por alguma obra dos céus ele tinha resolvido esta operação e nela via-se um grande certo azul que a professora havia dado.Não tinha como errar.Copiou cuidadosamente os números em sua mão e saiu da sala.Ainda deu tempo dele se misturar disfarçadamente com um grupinho que terminava um jogo qualquer, para que o vissem e cuidou de retornar com eles à sala para maior segurança de um álibi.Todos novamente acomodados, Fabinho aguardava, com a pulsação acelerada, o momento que a professora o mandaria voltar à lousa.Ela estava ainda na porta, e sussurrando ao conversar com uma colega sua, ia, de vez em quando, lançando olhares para o interior da classe. Fabinho começou a temer que se tratasse dele.Poderiam o ter descoberto.Algum colega o teria visto e foi delatá-lo.Fora o Donizete, sem dúvida.A professora entrara finalmente na sala e postara-se de pé junto a sua mesa.Olhou para a turma gravemente e pareceu ao menino que ela o olhava mais fixamente que para qualquer outro.Havia um pouco de tumulto na sala como se todos, menos Fabinho soubesse o que se passava.Depois de pedir silêncio ela disse:
— Meninos algo grave aconteceu em nossa escola hoje, não podemos deixar que um acontecimento como este passe em branco.
Neste momento, o pobre menino, tremendo e com o coração disparado, apagou da mão com saliva, disfarçadamente, a prova do seu crime.
— Infelizmente após uma grave doença o nosso querido diretor veio a falecer agora a pouco no hospital da cidade.A escola está de luto.As aulas serão interrompidas por hoje.Todos devem pegar o seu material e se dirigir ao pátio onde se fará uma oração pela alma do nosso estimado diretor.Fabinho não podia caber em si de contente!Nunca uma morte fora tão providencial!E o melhor é que era uma morte anônima, que não tinha o peso natural da morte de gente próxima.O diretor era uma figura que para ele só existia realmente no seu nome, ou melhor, no seu título de diretor, por traz das normas e recomendações que se ouvia de vez em quando, e que se sabia que ele as havia determinado.Acresce que ao pensar que tinha sido descoberto, ele tinha apagado a cola da mão, o que teria constituído um desastre, não fosse o óbito do diretor.Fabinho arrumou seu material na pasta, desceu solenemente na fila até o pátio, e rezou com emoção e gratidão àquele homem que, sem o conhecer, e sem ser conhecido por ele, o tinha salvado.






O ÚLTIMO A SABER


I
O Dia a Dia






Antero era casado há doze anos. Tinha uma vida simples. Gostava da esposa e do seu trabalho na biblioteca de uma escola de sua pequena cidade. A biblioteca era para ele um santuário. Depois de sua mulher os livros eram seus companheiros mais chegados. Mesmo após trabalhar o dia inteiro, ainda levava algum para casa para dar uma folheada. Era um tipo caseiro e pensativo, mas ao contrário do que se podia imaginar, ele não descuidava da esposa e estava sempre lhe trazendo pequenas lembranças ou flores. Era, em fim, um bom homem, um bom marido e um bom profissional. Só não era bom pai porque lhe negara o destino tal incumbência.
Uma noite, depois de algumas leituras, ele disse à mulher que no dia seguinte não viria almoçar em casa, pois iria ajudar na tarefa de levar os garotos da escola em uma excursão aos arredores da cidade. Iriam passear perto de um monte conhecido como “morro do cotovelo”. Deu boa noite à esposa e foi dormir mais cedo do que de costume para estar mais descansado ao amanhecer.



II
As expectativas






Quando voltou da excursão Antero pensou: — Sou agora um outro homem e sei que estas minhas novas atitudes faz com que todos me julguem e tirem conclusões. Madalena não nota nada, ou é muito discreta. Mas eu sei também que muitos dos nossos vizinhos não tiram os olhos quando ela passa e devem fazer os comentários de sempre. Madalena agora já está reparando que estou diferente. Já não era sem tempo. O diabo é que começou a me perguntar o motivo de minha mudança. Já falei pra ela que por enquanto não posso contar e que tenho que refletir muito a respeito. Ela é uma mulher bonita, não resta dúvida, e ainda é jovem também. Estes atributos não deixam de despertar o desejo neles, os ignaros, que não percebem que não sabem de tudo que eu, só eu, sei no mundo! Pensam que não ouço os cochichos quando passo. Mas subestimam minha capacidade auditiva, assim como nunca poderiam suspeitar de minhas faculdades não reveladas. Ouço perfeitamente seus chistes: “lá vai o coitado”, “deve ser um bobo”, “homem esquisito”, “parece não se importar com nada”. Mas já não falta muito tempo agora, o que é deles está guardado, só mais uns dias e saberão! Aí vamos ver quem será o trouxa, quem vai ficar surpreso, ah, ah , ah! –– Madalena, minha querida, eu tenho um peso enorme nas minhas costas, uma responsabilidade imensa com a qual não posso mais arcar sozinho, mas urge que eu a divida com o mundo! –– O que é meu bem, você está me assustando. –– Não posso revelar agora para você, pois de duas uma: ou me julgaria um louco ou você mesma poderia enlouquecer caso eu lhe provasse aqui mesmo nesta sala. Eu mesmo não sei como ainda conservo algum senso ou juízo. Resolvi então comunicar esta minha descoberta em público. Falei com o diretor da escola e ele concordou em convocar uma assembléia geral. Ele também ainda não sabe. Tentou descobrir, perguntou, insistiu, mas eu não disse gato. Afirmei que só posso falar na reunião. Será amanhã. Irão todos os funcionários da escola. Professores, alunos, pais, convidados da comunidade e representantes da prefeitura e da imprensa local. Madalena você não pode faltar! Jure que irá, jure! — Mas querido... — Não, não Madalena, meu anjo... pssiu... não fale nada, apenas jure que não me deixará sozinho neste momento! — Está bem Antero, eu juro, mas tente se acalmar.




III
Na ante-sala das revelações






— Como é bonita esta nossa escola não é diretor? Este auditório então é uma obra de muito bom gosto. Ótimo, é assim que deve ser um local que logo estará gravado nos anais da história! — Sim, sim, seu Antero, é verdade, mas não se canse muito, já vai começar o seu discurso. Olhe todos já estão aguardando. — Minha nossa é verdade, meu querido diretor, eu nem tinha reparado, não retardemos mais, ali está o microfone, tenha a bondade de sentar-se o senhor também junto aos demais convidados.



IV
O discurso






–– Excelentíssimos senhores, caros alunos, colegas de trabalho, amigos, autoridades, curiosos e vizinhos admiradores de esposas alheias: o que vou revelar hoje neste recinto, sem sombra de dúvida irá mudar a vida de todos e transformar o destino do homem! A minha própria vida já sofreu inúmeras transformações, e já não sou o mesmo, desde que tomei conhecimento deste fato. A maneira pela qual vim saber dele foi puramente acidental, literalmente falando, pois foi com um simples escorregão que levei em uma encosta íngreme, a qual eu escalava no dia em que acompanhei os alunos da nossa escola em um passeio pelo campo que pude perceber que isto era possível. Tendo naquele dia me afastado momentaneamente dos meninos enquanto estes permaneciam sob a guarda de um dos meus nobres colegas, subi o mais alto que pude no morro do cotovelo, o qual todos conhecem, e sabem que é um morro acidentado, escarpado, e de difícil acesso. Não sei dizer o que me levou a tal feito uma vez que nunca fui dado às práticas esportivas. Só posso atribuir este impulso irresistível que senti a uma inspiração divina que me impelia a me tornar o precursor nesta descoberta e um apóstolo solitário na sua divulgação! O fato é que subi. Quando dei por mim já estava no topo da elevação e seria segura a minha morte, pois ao pisar em falso, escorreguei e caí! Sim meus amigos, pasmem! Eu não disse que “quase caí”, mas que de fato caí! O que aconteceu comigo, então, e que eu julgava impossível a qualquer homem, e tomaria por maluco qualquer que me dissesse o contrário, foi o que me salvou. Minha gente segure em suas cadeiras, abram bem os ouvidos e tenham muita calma neste momento em que finalmente revelo isso. Hoje aqui, amanhã ao mundo: eu posso voar!
Quando estas palavras ecoaram pela sala, houve uma fração de segundo de silêncio e um entreolhar irônico entre os ouvintes, para logo a seguir o recinto explodir em gargalhadas histéricas de todos os presentes, desde as autoridades mais austeras até os alunos mais irrequietos. E simultaneamente a estas risadas todos que ali se encontravam, sem nenhuma exceção, voaram imediatamente em debandada em torno daquele pobre homem que, arregalando os olhos e batendo o queixo, caiu deitado, horrorizado, permanecendo boquiaberto e paralisado a olhar aquela inusitada revoada humana que ele jamais soubera possível. O auditório em peso voava em redor dele, sendo que muitos davam rasantes ousados que quase tocavam o seu corpo estendido no chão, enquanto gritavam: Anteeroo...Anteeroo...Anteeroo...
Até que um grito mais agudo e firme se elevou sobre os demais: — Antero! Vai se atrasar para a excursão dos meninos, anda, acorda homem!





UMA TRAGÉDIA DOMÉSTICA





Desde que nascera Leopoldo foi motivo de preocupação. Nunca tinha sido o que se podia chamar de uma criança forte. Pelo contrário, era franzino, vivia sempre meio adoentado e sobrevivera mesmo aos primeiros anos de sua existência a poder de muitos cuidados de toda sua família.
Não obstante, fora travesso desde a mais tenra idade e não parecia temer nada nem ninguém. Já aos quatro anos costumava subir sobre as banquetas da cozinha para alcançar os objetos que desejava, tentava utilizar utensílios perigosos e por mais vigilantes que fossem os seus pais ele sempre conseguia enganá-los a ponto de muitas vezes só darem por ele já na iminência de algum acidente doméstico precipitado por alguma de suas artes.
Mais crescido transferiu muito de seus ímpetos aventureiros para o quintal e vizinhança, realizando toda sorte de brincadeiras arriscadas em companhia de seus amigos mais chegados como também não fugia de gritar insultos ou dar e levar safanões. Enfrentava até meninos maiores, pois ele, como se dizia então, “não afinava pra ninguém”, e isso era para os meninos uma questão de honra. Subia em árvores muito altas e descia ribanceiras com carrinho de rolimã ou com bicicleta de freio contra pedal, façanha reservada apenas aos mais afoitos por exigir muita coragem e não pouca técnica. Algumas vezes nadava em ribeirões, se embrenhava em mata fechada, ou realizava inúmeras outras atividades que para as demais crianças seriam até naturais, mas que para ele constituía, aos olhos dos pais, um grande perigo.
Qualquer um poderia ler na personalidade de tal criatura uma facilidade em lidar com o mundo a sua volta e vislumbrar para o seu futuro um vencedor na luta pela vida sem, os melindres que em mais novo o afligiram e que agora pareciam de há muito tempo superados.
Seus pais, motivados pelas evidências, foram obrigados a soltar lhe as rédeas com algum receio e pesar, mas também com alívio, por constatarem que toda a fragilidade anterior dava lugar a um menino quase de ferro.
No entanto algo veio abalar esta estrutura rígida e este temperamento vívido e natural: a escola.
Chegara aos sete anos, não podia mais adiar aquilo que vinha temendo por muito tempo. Este ente misterioso, que desde há muito ele percebera, era o destino de todas as crianças, que povoava o seu pensamento e perturbara muitas vezes também o seu sono invadindo-o na forma de horríveis pesadelos, batia agora à sua porta como um chamado do destino que ele o teria de enfrentar. Não havia alternativa, sua mãe já lhe arranjara alguns cadernos e lápis, costurara o uniforme, e até mesmo tinha comprado para ele uma bonita pasta de couro, extravagância orçamentária destinada a não deixar que ele “fizesse feio” frente aos colegas de maiores posses.
O estranho é que apesar de todo o seu medo, existia bem lá no fundo uma espécie de curiosidade. Talvez um pouco de satisfação de possuir agora alguns objetos novos e diferentes como os cadernos, os lápis, alguns até coloridos, e a cheirosa pasta de couro. Sentia certo consolo entorpecente ao inalar o aroma daquele material todo quando o manuseava. Era curioso como que a expectativa de algo que poderia lhe reservar muito sofrimento, segundo conhecia de ouvir contar por meninos mais velhos, como os deveres, os castigos, as dificuldades, podia também lhe trazer estas sensações estranhamente agradáveis despertadas pelo toque e pelo olfato.
Na manhã do primeiro dia de aula ele ainda tentou um último gesto, que se não solucionava definitivamente o caso, pelo menos poderia adiar o sofrimento.
— Mãe eu to com dor de barriga.
— Deixa de conversa fiada e vai levantando.
— Mas mãe, eu to com muita dor de barriga e vontade vomitar.
Dizia isso se contorcendo e simulando uma ânsia violenta que bem analisada não passava de uma imitação grosseira. Porém, parece que de alguma forma, a visão desta cena lograra acordar na mãe as antigas e angustiantes preocupações daquela primeira infância do garoto fazendo com que ela pousasse lhe a mão na testa para verificar se tinha febre. Leopoldo sentia um breve alento tanto pelo tato da mão da mãe, como pelo sentimento de que seu ardil podia render os frutos prometidos.
Não chegava a ter este pensamento de uma forma direta, com falsidade no coração, mas acontecia do toque suave e consolador daquela mão fazer com que ele confundisse suas verdadeiras e primeiras intenções e parecer mesmo que começava a ficar deveras doente.
Existe na mentira, não na mentira sozinha, solitária, sem aparado cênico, mas naquela que exige alguma interpretação, algum gesto teatral que envolva arte e expressão corporal, algo que vai se infiltrando sorrateiramente no corpo e acaba por criar uma vida própria que tende a tornar o embuste uma quase verdade, pois os sentidos do próprio corpo são enganados pela mente. Assim, Leopoldo, iniciando sua representação por uma frase e um gesto falso não podia evitar que eles adquirissem agora um aspecto que os tornavam reais e críveis.
— Olha meu filho, vamos fazer o seguinte, você não vai hoje, toma um chá e fica descansando, mas amanhã vai de todo o jeito!
Descortinava lhe um céu maravilhoso diante dos seus olhos. Nunca lhe parecera tão doce, tão agradável, ficar em casa.
Mais tarde, transferido o seu repouso para o sofá da sala a mãe ligara a televisão e um fantástico elemento novo vinha a dar maior sabor a sua ventura. Na tela anunciava-se o filme da sessão da tarde que trazia no enredo heróis e monstros, e ele poderia assistir tudo. Era a liberdade! Olhava de vez em quando para o relógio pendurado na sala para comparar o horário, fazer contas de quanto tempo ainda estaria entregue ao seu mundo de delícias enquanto seus amigos todos que começavam hoje também a escola deveriam estar sofrendo as agruras que fatalmente lhes estavam sendo infringidas.
Aqui uma sombra veio macular sua tranqüilidade. Pensava na idéia do castigo divino. Certamente Deus não deixaria impune um crime sórdido como o seu que mentira à própria mãe! Se ainda fosse uma mentirinha qualquer sobre a perda de um dinheiro que lhe fora confiado, ou negar que tinha estado em determinado local que ela o proibira de ir brincar, ainda dava para se justificar. Mas a mentira envolvia a doença, coisa séria com a qual “não se brinca”. Sabia das preocupações que impusera a todos quando mais jovem, pois isso era assunto comum na casa e os parentes e amigos da família viviam comentando: — “quem viu este menino em bebê não poderia achar que vingasse”, — “é mesmo, era pele e osso”, — “se não fosse a grande dedicação da mãe tinha morrido”. Estas palavras ecoavam-lhe aos ouvidos como um coro acusador de um tribunal da consciência. Tomado então de temor, rezava silenciosamente o Pai Nosso e a Ave Maria, e prometia para Deus que jamais tornaria a mentir para a mãe ou para qualquer outra pessoa. Suportaria pacientemente a escola e daquele dia em diante seria um filho muito obediente e bom.
A mãe tornou algumas vezes à sala para verificar se o filho havia melhorado. Nas primeiras vezes em que foi vê-lo tinha ainda a mulher um ar preocupado, mas este logo foi se desvanecendo e se transformando em um franzir suspeito de sobrancelhas, pois a cada visita sua àquele cômodo ela encontrava o garoto vidrado no filme enquanto cravava os dentes em algumas bolachas. Muitas vezes ao notar que fora surpreendido com um ar brilhante e satisfeito nos olhos e um leve sorriso nos lábios ele tentava em vão dissimular com uma espécie de espasmo que lhe torcia levemente o canto da boca, mas que não era sustentado ou por exigir demasiada distração do enredo que se desenrolava na tela, ou por lhe parecer que a mãe já não podia ser ludibriada.
A tarde transcorreu já na certeza da melhora definitiva, o que, por anular o engodo, consolidava novamente um vínculo perdido no momento em que ele escolhera urdir uma trama de falsidade contra aquela terna e atenciosa criatura. Realmente, pensava ele, devia expiar seu pecado definitivamente, pois sua mãe era a última pessoa que ele podia trair.
A noite veio encontrá-lo pacificado consigo mesmo. Suspirando serenamente, deitado em sua aconchegante cama ele tentou rezar mais uma vez para selar totalmente seu arrependimento, porém o sono o alcançou antes do final da prece.
Na manhã seguinte Leopoldo levantou rapidamente e bem disposto. Arrumou todo o material escolar na pasta e vestiu o uniforme. Na cozinha, cumprimentou a mãe alegremente e tomou seu café da manhã conversando bem animado. Terminado o café deixou a pasta na sala e foi ao banheiro antes de sair. Lá dentro sentiu um pequeno calafrio e um friozinho na barriga ao pensar nas horas que se seguiriam na escola. Não pensou duas vezes, enfiou o dedo na garganta, botou todo o café para fora e gritou:
— Mãiêe!






FINADOS




Já antes do amanhecer começara o alvoroço comum daquela data. Todo o ano acontecia aquilo. Chegado o dia todos ficavam entusiasmados e excitados com as comemorações. Afinal de contas era uma data importante. Esperavam por ela com ansiedade e embora tivessem algumas outras atividades em outras épocas aquele dia era muito especial para eles. Era, sem dúvida, um dia festivo.
Nem bem amanhecia as pessoas começavam a chegar. O ar logo se impregnava daquele odor peculiar de velas acesas que brilhavam com suas chamas vivas e alegravam o ambiente com suas variadas cores e tamanhos. Em pouco tempo todo o labirinto de lápides estava repleto de flores de toda espécie, formato, cor e aroma.
Os defuntos, ou melhor, os espíritos, iam aparecendo pouco a pouco, vinham juntos com outros ou sozinhos, e, reconhecendo ali outras almas com as quais não tinham muito contato, animadamente começavam a relatar acontecimentos passados ou atuais motivados pelos eflúvios do dia tão agitado que começava.
Preenchiam em outras épocas o seu tempo de várias formas. Uma delas era fazendo pedidos a outras almas que já estavam mais evoluídas, para que estas os fizessem chegar ao alto escalão celeste que, então, providenciaria sua efetivação. Não faziam estes apelos por eles próprios, mas para atender a novenas e rezas de conhecidos e familiares que ainda estavam vivos. Tinham duas recompensas por esta atividade. Uma era a própria ajuda que prestavam aos seus e a outra era que existia um sistema de bônus do céu que era concedido proporcionalmente ao número de pedidos e à presteza do encaminhamento destes, e no caso da realização plena do mesmo havia uma premiação extra de acompanhar anjos em viagens a qualquer parte do mundo.
Certamente alguns eram mais ocupados que outros, pois como as intervenções dependiam da solicitação de pessoas vivas, parentes, amigos ou conhecidos, elas estavam vinculadas a maior ou menor credulidade destas, e muitos acabavam ficando bem ociosos se tinham o azar de ter tido família e amigos não muito religiosos. Estes mais folgados passavam o longo tempo disponível, a ouvir alguma récita de anjos, na leitura de textos sagrados, assistindo palestra dos santos ou simplesmente a conversar com colegas. Alguns deles exerciam uma vez ou outra, alguma substituição no atendimento ao encaminhamento das requisições quando a alma titular evocada recebia pedidos numa quantidade maior do que ela poderia administrar. Esta, porém, não era uma prática muito ortodoxa e sofrera mesmo algumas sanções divinas por constituir um desvio inadequado da responsabilidade pela súplica.
Era compreensível que o dia dos mortos fosse aguardado com tamanha expectativa, porque se para os muito ocupados acabava por se transformar em um feriado pelo fato de os parentes que geralmente vinham em outros dias pedir favores, comparecerem naquela data principalmente para agradecer alguma graça obtida, para os mais esquecidos sempre constituía uma oportunidade para que os seus entes queridos pudessem refrescar a memória e lembrar de orar por eles como também lhes encomendar alguma ajuda do além.
Porém, o que mais entusiasmava no evento era mesmo a constatação da popularidade do morto, a sua celebridade. Num determinado momento, no horário de pico das visitas eles costumavam se reunir para observar e comentar o trânsito da multidão, o luxo das coroas de flores ou das roupas das visitas.
Logicamente cada cemitério recebia as almas daqueles que tinham nele construídas a sua última morada. Mesmo assim a população era grande, pois assim como existem cemitérios pequenos ou mesmo minúsculos em cidadezinhas ou vilas, existem também, é claro, o das grandes metrópoles que são enormes. Aquele era de porte médio e embora fosse bastante alto o número de almas que afluíam para aquele lugar sagrado naquele dia isso não constituía um problema de superlotação uma vez que no mundo espiritual os corpos não têm massa, mas são formados de etéreos fluidos vitais que mesmo mantendo a forma que tiveram em vida, podem ocupar simultaneamente o mesmo lugar no espaço.
No decorrer do dia, muito influenciados pelo clima de festividade e pela aglomeração de gente que passava para lá e para cá, parando em frente aos jazigos, fazendo observações, demorando-se mais neste ou naquele, os espíritos acabavam por se deixar levar a uma disputa acirrada discutindo de maneira acalorada e incomum os acontecimentos.
Era isso que acontecia com três almas que estavam sentadas no muro do cemitério observando, satisfeitas, aquele desfile de homens, mulheres e crianças que se revezavam em frente às campas.


1ª Alma:




— Vejam quantas pessoas importantes visitaram até agora meu túmulo. Só que contei foram dez, e não estou computando aquelas mais comuns, mas falo dos médicos, acadêmicos e advogados. Até o prefeito atual da cidade e as esposas de dois outros que ocuparam o cargo em anos anteriores deram uma passadinha por lá.


2ª Alma:





— Não há do que se admirar, pois que você foi, em vida, um homem rico e influente, mas no meu túmulo também não foram poucos os visitantes ilustres, e eu não tinha grandes posses enquanto vivo, mas minhas muitas intervenções favoráveis aos pedidos destas criaturas é que me foram trazendo do anonimato à fama. Conquistei esta distinção, a meu ver, com um esforço bem mais válido.


3ª Alma:





— Embora vocês dois tenham recebido até agora provavelmente visitas dos cidadãos mais eminentes da cidade e da redondeza, creio que foi maior o número dos que passaram pelo meu túmulo. Não dou atenção ao grau de importância social de minhas visitas, para mim tem um peso igual o rico e o pobre, o culto e o ignorante.
1ª:
— Conversa! Não contou direito. Como poderia ser isso se você não tem nem mesmo dois anos de falecimento.

2ª:




— Isto é verdade, ah, ah! Se abrissem o seu caixão nem encontrariam um esqueleto completamente formado ainda, e penso também que se você tem bastante visita agora, isto se dá justamente por ser um morto recente. Eu, ao contrário, estou aqui há mais de dez anos e minhas visitas continuam fiéis. Quero ver se poderá sustentar esta mesma constância por tanto tempo.

1ª:




— E eu então? Acho mesmo que este é um dos últimos dias de finados do qual participo ativamente. Já não tenho a mesma disposição de antes, lá se vão vinte e cinco anos desde o acidente que me matou. Parece que foi ontem. Realmente uma tragédia. Ainda me lembro que alguns jornais noticiaram por todo o estado: “ceifada pela morte trágica e prematura uma das mais brilhantes mentes do direito penal do país”.

2ª:
— Não é o que ouvimos com freqüência pelo céu.

1ª:
— O que está insinuando?

2ª:



— Nada. Longe de mim eu querer questionar a sua competência na profissão que exerceu em vida. Só que quando cheguei aqui, após a minha morte, ao me apresentarem a você, disseram-me, recomendando discrição, que fora um espertalhão na terra e um advogado que teria enriquecido por meios não muito católicos.

1ª:



— Quero saber quem foi o autor desta calúnia, crápulas, a se pego um destes!

3ª:



— Que isso amigos, vamos deixar estas coisas de lado e aproveitar o momento, não se esqueçam que temos visitas. O dia não é próprio para discussões.

1ª:

— Não fui eu que comecei.

2ª:



— Eu somente estava tentando abrir os seus olhos para este seu orgulho exacerbado de ficar se vangloriando de ter como visitas pessoas importantes. Isto não é bom para você, cuidado com as punições para este pecado, pois como sabe não são nada agradáveis, lembra-se do número 38767? E olha que no caso dele foi só a jactância, no seu poderia ser acrescida punição extra pela mentira.

1ª:

— Mentira é o raio que o parta!

3ª:

— Senhores, por favor!

2ª:



— Olha você também não vem dar uma de apaziguador não, ta? Que tenho sua fichinha também. Estes seus “panos quentes” são pura bajulação do primeiro escalão. Sua intenção é que sua conduta chegue aos ouvidos dos santos, pensa que não sei? Coisa de marinheiro de primeira viagem, que não tem opinião. Precisa passar por muita contagem de tempo antes de querer dar palpite por aqui.

3ª:



— Ah é? Pois então escuta essa! Você não conquistou todo este prestígio através de suas intervenções em favor dos vivos, coisa nenhuma! A verdade é que é uma alma preguiçosa até mandar parar, conseguiu foi um grupo de novatos influentes por virem de famílias muito religiosas e fez com que eles levassem aos espíritos superiores os pedidos dos seus suplicantes como se fossem dos deles, mas sei por fonte segura que este seu esquema fraudulento já caiu, você deu com os seus burros n’água e agora está pagando pecados parcelados por serem muitos.

1ª:

— Opa! Essa é boa!

2ª:

— Ordinário!

3ª:

— Infeliz!

2ª:

— Vai para o inferno!

3ª:

— Pelo menos lá não terei que conviver com vocês, seus larápios!

1ª:



— Canalhas! Todos os dois!
Ao verem que um supervisor das atividades de finados se aproximava do local em que estavam estas três almas separaram-se lançando olhares ameaçadores umas às outras.
Todavia, transcorria serena aquela tarde de finados no cemitério e já quase ao pôr do sol eram poucas as pessoas que caminhavam nas ruelas formadas pelos túmulos, e ainda mais raras as que paravam diante de alguma lápide para fazer alguma oração para que descansassem em paz.




A TEORIA DO BOCEJO -Uma variação Machadiana - 

(Episódio do inicio do século XX)



Para A.M



Certa noite Dorival conversava com o filho na biblioteca de sua casa. Dizia que notava nele um amante das boas conversas e que era bom cultivar o hábito, mas que esta prática exigia alguma técnica. O assunto surgira devido à preocupação paterna ao notar que o rapaz não pudera esconder certo cansaço da conversa que estiveram mantendo com alguns amigos um pouco antes, apesar de notar suas tentativas, e de ser evidente que o jovem entusiasmava-se com o costume de palestrar. Muitas vezes, porém, não podia manter pelo tempo necessário o interesse aguçado, ou mais precisamente, não conseguia ter mesmo a disposição física exigida nas conversações mais demoradas. Após os conhecidos os terem deixado a sós, sentou-se em frente de Augusto e começou a explicar ao filho algumas idéias que ele, o pai, julgava serem necessárias à correção deste pequeno problema do jovem. — Quando encontramos o interlocutor adequado, meu filho, nós podemos mesmo passar muitas horas entretidos em expor uma idéia, retrucar as réplicas e ouvir as teses alheias. Naturalmente a cultura não é um fator do qual se possa prescindir nestas horas para que se mantenha um bom nível de interesse de todas as partes. A conversa deve ser interessante, ter as idéias coesas e atraentes e foi por isso, Augusto, que sempre fiz questão de que tivesse uma educação esmerada. Ainda é muito jovem e já transita bem em literatura, política, filosofia e nas artes em geral. — Sim pai, mas muitas vezes tenho um pouco de receio de não acompanhar o raciocínio de forma completa, temo não estar à altura de alguns amigos que talvez sejam mais lidos e que possam formular de maneira mais clara que eu os argumentos. — Sua apreensão, meu caro, me parece totalmente desnecessária e infundada, uma vez que como já observei anteriormente, não lhe faltam armas com as quais pode lutar para, não só interessar o seu interlocutor, ou interlocutores, como também não deixa de ter outras tantas que lhe permitam analisar as colocações alheias e refletindo sobre elas as comparar e restituí-las de pronto ampliadas àquele que as propôs. Um só cuidado parece que deveria ser tomado, mas este exige uma explicação detalhada. — Pois vamos a ela, que estou curioso. — Antigamente eu me parecia muito com você neste aspecto, quero dizer, gostava muito de entabular conversações, mas sentia me cansado às vezes e até mesmo... Bem, mas vamos ao fato que esclarecerá mais adequadamente o que estou tentando lhe explicar. Levantando-se da sua poltrona, Dorival começou a caminhar lentamente pela biblioteca e com ar pensativo continuou. —Tive há muitos anos um grande amigo. Freqüentávamos mutuamente as casas um do outro, quando tínhamos, então, longas e animadas conversas sobre os mais variados temas. Em dado momento empreendíamos a análise de uma sinfonia, ligávamos esta a um conceito filosófico, concluíamos que a geometria e a arquitetura envolviam se de forma indissolúvel ao tema, após o que passávamos às últimas noticias da política, e não raro embrenhávamos na densidade controversa de alguns tópicos teológicos. Mesmo o esporte que não era o forte de nenhum de nós, não constituía assunto totalmente estranho às nossas palestras. Éramos como dois irmãos. Não, certamente mais até que irmãos. Mas acontece, que aquelas nossas reuniões, que não raro atravessavam as tardes, começaram a me pesar no corpo, pois a muita escrita da contabilidade que eu fazia até o meio do dia me fatigava demasiadamente, e eu nunca pude dormir cedo, para estar descansado no outro dia, pois adorava as horas mais avançadas da noite e fazia nelas as minhas muitas leituras, audição de música, assim como arriscava alguns escritos que naquele tempo eu tinha o hábito de compor. Como é de se supor, não demorou muito para que este ritmo pesado de vigília fosse minando as minhas energias. — Mas não bastava não receber ou visitar mais o seu amigo nestas tardes e reserva-las ao descanso? Remexendo os livros na estante, de costas para o filho, lendo as lombadas distraidamente, o homem esboçou uma espécie de sorriso quase imperceptível e prosseguiu dizendo. — Ah, meu filho, talvez não tenha ainda deixado se dominar totalmente pelo vício da conversa, o sabor da reflexão sobre algo proposto e o diálogo acirrado e franco. Bem que eu queria fazer o que disse, mas minhas veias estavam tomadas por este sutil veneno da dialética. O caso é que meu amigo era rico e não precisava trabalhar naquelas primeiras horas do dia. Sua família tinha fazenda de café e ele fazia somente algumas visitas ao campo nos finais de semana para ver como andavam as coisas. Era uma competição desigual, e como eu não conseguia me livrar da compulsão, persistia nos encontros com o meu colega. Porém, como uma ou duas vezes ele notou que eu demonstrava certa indisposição, acreditou que isso fosse um sinal de um desinteresse por sua conversa o que equivalia para ele a desprezar o seu intelecto. — O senhor podia falar lhe francamente, explicar suas razões. — Não podia. Se o fizesse corria dois riscos. O primeiro era que ele podia compreender, e deixar, por minha causa, de comparecer aos nossos encontros, o que constituiria a perda de meu alimento periódico de boas conversas. Por outro lado se ele suspeitasse nesta explicação uma desculpa para não mais conversar com ele, achando talvez que eu me enfadara de sua pessoa, eu perdia a um só tempo as duas coisas, as conversas e o amigo. Agora que eu notara que ele parecia estar um pouco insatisfeito quando eu demonstrava desânimo, passei a tomar cuidado para que isso não ocorresse. Note-se que eu adorava permanecer ali conversando, era talvez a minha diversão preferida. Uma verdadeira paixão. E por nenhum momento eu me desinteressava de sua conversa ou arrefecia o ânimo da alma pelas nossas confabulações. O problema era o diabo do corpo que não agüentava. O que mais me preocupava era a vontade que muitas vezes me dava de bocejar. Outras expressões de cansaço até poderiam ser contornadas, pois não eram tão evidentes. O bocejo não, este era indisfarçável, sincero, espontâneo, às vezes podia parecer mesmo que trazia certo ar de censura e condenação do outro que fala. Comecei então a me aplicar no estudo deste fenômeno natural, reparava nas pessoas e em como e em que situações bocejavam. Analisei os melhores ângulos para se perceber que alguém bocejava e, conseqüentemente, as posições que tornaria mais difícil o flagrante deste ato. Por fim descobri que a aplicação deste conjunto de cuidados catalogados por mim em todas as minhas observações junto com uma técnica apurada que desenvolvi posteriormente e que consistia em permanecer com os lábios quase cerrados, os dentes ligeiramente afastados e o olhar fixo com a atenção redobrada no interlocutor, enquanto suave e imperceptivelmente realizava-se a inspiração e expiração espontânea do ato de bocejar, era de uma eficácia quase perfeita e poderia solucionar definitivamente os meus problemas. Dominada a técnica eu precisava colocá-la em prática, e era o que eu poderia fazer dali a três dias, pois estávamos em um sábado quando comecei a treinar o procedimento e nos encontraríamos na terça-feira. A princípio não foi fácil, tentava permanecer com a boca fechada, mas ela acabava por se escancarar, foi também cansativo, pois para praticar eu tinha que produzir um bocejo artificial, que muitas vezes me dava até dores nos maxilares fazendo que eu permanecesse mais tarde com uma desagradável nevralgia. Esta técnica mesmo, paralela à primeira de dissimulação do bocejo, esta de realizar um bocejo artificial eu tive que desenvolver como ferramenta coadjuvante, sem a qual eu não teria como praticar minha fantástica invenção de controle do bocejo. Quando chegou o primeiro dia em que eu teria a chance de aplicar oficialmente o artifício, eu confesso que me senti um pouco nervoso, com receio que não conseguisse realizar o ato adequadamente, de ser desmascarado, e que, descoberta a falsidade a coisa fosse ainda pior do que se por acaso ele tivesse apenas me pegado bocejando abertamente, temia que ele tivesse uma reação muito mais negativa, talvez até violenta, podia mesmo me expulsar de sua casa e ficar irremediavelmente revoltado transformando-se em meu inimigo. Porém, graças a minha habilidade adquirida nas muitas horas de treino, todos os meus temores se revelaram injustificados. Minha atuação foi um sucesso total. Bocejei não uma ou duas vezes, mas só que consegui contar foram doze. Isso mesmo, doze bocejadas, que me revigoravam, cada uma por sua vez, plenamente, para mais alguns longos minutos de conversa animada. Bocejava com perfeição na nova técnica, permanecendo, tal como idealizara na parte teórica do processo, parado, olhar fixo no meu amigo, com perfeito domínio da situação. Eu havia descoberto algo que podia modificar as relações humanas, de agora em diante o homem não precisava mais por questões de etiqueta e educação se privar de nada, nem do trabalho até altas horas, ou mesmo do ócio noturno. Aqueles, que assim como eu, adoravam ficar acordado até de madrugada podiam de agora em diante se entregar a este prazer e realizar todas as suas atividades de convívio social no dia seguinte de maneira normal e sem inquietação. Meu filho, eu havia revolucionado o comportamento formal e restituído à humanidade, a polidez. Após terminar sua brilhante exposição, Dorival, virou se para Augusto, para se deleitar com o assombro do filho diante de inusitadas e extraordinárias revelações, mas não pode deixar de sentir algum desgosto ao ver que ele dormia tranqüilamente a sono solto.





VOCAÇÃO PROIBIDA





Jorginho era um menino tímido. Quase não chegava perto das meninas. Brincava pouco com garotos de sua idade e quando alguma garota se aproximava ele mudava radicalmente suas atitudes e de franco e espontâneo se convertia em quieto e pensativo. Alguns adultos de sua família chegaram a atribuir o fato a algum desvio comportamental. Era notório que os colegas de Jorginho eram mais atirados e se saiam melhor no trato com o sexo feminino. Poderíamos achar que o menino padecia do clássico mal dos introspectivos que são famosos por suas fugas da realidade em favor da fantasia. Se pesquisássemos os seus pertences podia ser que achássemos alguns escritos poéticos, desenhos e pinturas. Imaginaríamos que ele amava os livros e aprendia neles, erroneamente, muito de como agir na sua vida. Acreditaríamos que teria predileção pelas flores, pelo campo, pelo sol e pela chuvinha miúda das tardes cinzentas, e que a inspiração que de tudo isso lhe advinha em pensamentos, frases, poemas, era uma espécie de justificativa para a sua maneira de viver e sentir. Mas era justamente o contrário. Ele era um aficionado em meninas e se havia em seu comportamento algum distúrbio este era, certamente, uma compulsão por qualquer imagem de mulher que visse nos livros, na rua, na televisão ou no cinema. Desde muito cedo sentira ele certos impulsos que o levavam a hábitos um tanto escusos por ter que ludibriar os pais e os irmãos mais novos a fim de ficar até altas horas da noite assistindo aos filmes proibidos exibidos na televisão ou para trancar-se no quarto na companhia das revistas de mulher pelada. Escondia, porém, tão bem este comportamento que acabava por passar a impressão contrária. Por algum tempo foi vítima de observações agressivas de garotos da escola ou dos bairros um pouco mais distantes da sua casa, que não o conhecendo muito bem, só percebiam as aparências e às vezes o insultavam verbalmente.
–– Como é que vai maricas?
–– Onde é que vai indo? Algum encontro com o namorado?


Curiosamente, nenhum colega seu ou qualquer menino das vizinhanças o tratava mal ou com suspeitas deste tipo, mas antes pareciam ter-lhe respeito e admiração. Todas as suspeitas sobre seu temperamento de sonhador e romântico eram infundadas e é claro não existia nenhum dos poemas, pintura ou livro em seu dormitório. Mas ninguém podia entender o porquê do garoto se sujeitar às gozações dos meninos estranhos ao seu convívio ou quais os motivos de ele não demonstrar claramente suas reais preferências.
Assim transcorria a vida de Jorginho até que se mudou para a vizinhança uma linda menina de dezessete anos de nome Thaís, que passou dali a algum tempo a ser a única mulher com a qual ele realmente se relacionava mais de perto. A amizade de ambos parecia crescer a cada dia e ele a visitava muitas vezes escondido, não só para manter a sua natural discrição, como também por não poder o pai da moça, um homem austero e religioso conservador, perceber que ela mantinha contato com meninos. Mistério dos mistérios. Todo o gosto pelas mulheres, tantas meninas mais acessíveis, e aquele garoto que agia de forma totalmente contraria a esperada pelos padrões considerados normais, procurava uma forma adversa e complicada de saciar sua sede pelo sexo oposto. Será que eles já namoravam? Teriam intimidades mais ousadas? Eis as perguntas que todos poderiam querer formular, se soubessem dos encontros fortuitos de Jorginho com a garota. Mas para entender até onde chegava a relação deles devemos seguir o garoto em uma tarde em que ele vai ao encontro da menina. Eram umas sete horas da noite quando os pais de Thaís a deixaram cuidando do irmãozinho mais novo, um bebê de colo, para irem à igreja. Sempre que ela cuidava do neném, fazia com que ele dormisse logo para ficar livre por mais tempo. Normalmente não permitiam que a filha faltasse à igreja, mas algumas vezes ela inventava alguma desculpa e conseguia autorização para não ir. Naquela tarde, ao chegar a casa dela, Jorginho foi logo entrando por um portãozinho alto que ficava nos fundos, onde, num corredor comprido e estreito, uma fila de garotos aguardava ansiosamente o momento de beijar a bela Thaís.
–– E aí Jorginho, meu irmão! Olha lá, cara, eu to na frente, viu?
–– Fala aí Jorge, vamos lá amizade, vamos começar logo!


Jorginho ia passando por todos, e enquanto recebia tampinhas nos ombros e cumprimentos por todos os lados, mantinha-se altivo e silencioso, apenas esboçando um sorriso superior um tanto cínico e um olhar determinado. Com passos firmes caminhava decidido até a entrada dos fundos da casa e, postando-se no degrau mais alto da escada que levava à porta, finalmente fazia ouvir sua voz em tom autoritário.
–– Pode entrar o primeiro. Acho que é você, não é, Toninho? Vai passando a grana aí!




A DESCOBERTA DE UM DOM


Francisco havia começado a estudar piano na adolescência. No começo, sentiu como que uma comoção forte e alguma convicção, porque os tempos eram outros e não havia muitos, pelo menos da sua idade, e em sua cidade, que tivessem maiores dotes musicais. Algum arroubo momentâneo e convulso assim como uma febre violenta se apossou do rapaz e ele passou a arrancar de si mesmo uma habilidade temporã, forçada. Acabou que por ter uma índole que sempre fora arrastada pela correnteza da sensibilidade quase doentia, conseguiu sobrepor esta a uma deficiência técnica que já nascia com ele ao dedilhar suas primeiras notas. Atacou então de cara dura algumas páginas elevadas da literatura pianística, e como conseguisse efeito sonoro, se não correto, mas pelo menos perturbador, seguiu adiante por um bom tempo. Passados alguns anos vamos encontrá-lo tocando em casamentos e em alguma pequena comemoração. Não logrou sair de sua cidade e conquistar as salas de concerto, pois como já advertíamos, nunca primou pela qualidade e capacidade técnica, embora ainda depois de todos aqueles anos lhe brilhasse, vez ou outra, um lampejo de musicalidade. Tocava agora em casamentos ouvido por convidados da igreja, padre e noivos, que é obvio não escutavam nada, já que os primeiros esperavam preocupados em cortar a fila dos cumprimentos, o segundo recitava de cor o ritual sabe lá com o pensamento onde. Os noivos, é claro, aguardavam o fim do enlace com a idéia bem distante das notas musicais. Após estes eventos, ficava irritado e aflorava nele alguma esperança de ainda poder ser realmente ouvido. Retirava das estantes alguma obra de maior envergadura e atacava-a com uma ferocidade que parecia que um dos dois, piano ou executante, não poderia sair ileso da luta. Mas era apenas o retorno da febre da juventude. Há destas recaídas em todo tipo de atividade, assim como em toda sorte de enfermidade. Um dia contratado para acompanhar umas aulas de Balé, se animou um pouco mais, pegou as partituras que eram próprias das aulas, e já entrando na meia idade não deixou de ter algum entusiasmo por ver as moças naqueles trajes sensuais de bailarinas. Não pôde permanecer por mais de uma semana nesta atividade, pois demonstrou ao tocar as peças para ele desconhecidas, uma leitura deficiente e tarda que acabava por atrapalhar o andamento das lições. Tentou jogar a culpa da distração que lhe advinha, na dificuldade de desviar o olhar das meninas, mas era mentir para si mesmo. Aos cinqüenta e cinco anos tornou se um tanto recluso, mas acompanhava de ouvir contar ou pela televisão os sucessos de muitos que ele conhecera e que haviam começado ali mesmo em sua cidade e que brilhavam em concertos dentro e fora do País. Alguns anos mais e numa tarde bateram-lha à porta. Era uma senhora que se mudara por aqueles dias para a vizinhança e soubera por vizinhos que o senhor idoso da casa da esquina sabia tocar piano. A mulher explicou lhe então que seu marido, um homem de setenta anos e deficiente devido a um derrame cerebral, tinha como única satisfação, ouvir o canto de seus canários da terra. Porém, disse-lhe aquela senhora que todos eles haviam se calado desde que ela e o marido tiveram de mudar de um apartamento, onde o vizinho era pianista, e ela estava convicta que os canários não mais cantavam por não ouvirem o piano, pois quando estavam no apartamento, eram os dedos do músico começar a trabalhar sobre as teclas que o catarolar repleto de trillos enchiam todos os cômodos da casa. Ela tentara gravações de todos os tipos, mas os passarinhos nada de abrirem o bico. Muito preocupada com o marido que não queria saber de mais nada e recusava até a comida, chorando pelo canto dos pássaros, ela pedia encarecidamente que o senhor vizinho aceitasse um emprego para ir tocar piano na casa deles na parte da tarde por pelo menos quatro horas, remunerado é claro e com pausa para o café da tarde servido no local do emprego. Afirmava que dinheiro não era problema e que se ele aceitasse já tinha o piano reservado para ser entregue no dia seguinte. O velho senhor, não só aceitou o convite, como ficou comovido até as lágrimas. E dois dias depois estreava na sala de música da casa dos outros dois velhos, e entusiasticamente fazia o piano soar músicas que ele mesmo ia improvisando, e quanto mais agudas e ornamentadas eram as notas, mais se ouvia as aves canoras solistas, gorjeando seus trinados ininterruptos para a felicidade do enfermo, da sua esposa e do senhor Francisco: o primeiro e único co-repetidor de canários.




VISÕES EXÓTICAS



––– Zé eu to falando a verdade!
––– Só vendo para eu acreditar.
––– To te dizendo, eu mesmo vi, lá da janela de casa, dá pra ver certinho.
––– Mas ela tira tudo?
––– Aí varia, às vezes tira só uma parte, outra hora tira tudo.
––– Mas ninguém percebe?
––– O quê, eu olhando, ou ela tirando?
––– As duas coisas, seu Mané!
––– Bem, pra falar a verdade, um dia chegou alguém lá, acho que a mãe dela, e fechou a janela. Pensei que depois desta nunca mais ia ver.
––– E viu de novo?
––– Lógico, no dia seguinte ela estava lá de novo e mostrou tudo outra vez.
––– Mas dá altura? Quero dizer, como é que você consegue ver se ela tirou tudo?
––– Minha janela é bem mais alta.
––– Puxa Paulinho, você podia me deixar ir até a sua casa ver também?
––– Só se você me der aqueles cromos dourados da série ouro do álbum dos heróis.
––– Mas logo estas? Não serve as prateadas?
––– Ah não, das prateadas já tenho muitas, tem que ser as douradas, série ouro!
––– Meu pai me mata se descobrir que eu dei as figurinhas.
––– Tem que ser estas.
––– Mas eu tenho que te dar todas?
––– Todinhas.
––– Acho que não vale.
––– CE’ que sabe.
––– Ta bom, mas se eu for lá num dia que ela não tirar tudo eu volto de novo.
––– Isso eu não posso garantir.
––– Por que não?
––– É que às vezes acontece do pai dela levar uma parte dos pássaros para o laboratório.
––– Mas por quê?
––– Ora, sei lá. Acho que ele os estuda, é uma espécie de colecionador e cientista o pai dela.
––– São aves raras, não é?
––– Eles as chamam de exóticas. Foi a Martinha que me disse. Ela que me contou dos pássaros do pai um dia, aí eu pedi pra ela mostrar.
––– E por que você não foi lá ver de perto?
––– O pai dela não deixa. O único jeito foi sondar de longe.
––– Então está feito. Amanhã trago as figurinhas.
––– Combinado, mas tem que ser escondido, ela pode achar ruim e não me deixar ver mais.
––– Pode ficar tranqüilo, então até amanhã.
––– Tchau.





EPOPÉIA DANTESCA


Um antigo professor me dizia certa vez que se Dante tivesse vivido em nosso século poderia ter narrado sofrimentos inimagináveis na sua Comédia, pois, segundo o professor, os flagelos da alma no inferno e no purgatório, descritos nos livros daquele poeta, não podiam se comparar a alguns horrores atuais que torturam de maneira atroz a muitas pessoas nos dias de hoje. Quando ouvi estas palavras dele lembro que elas me pareceram exageradas e rabugentas. Mas o tempo vem transformando nossas impressões das coisas e corrigindo nossos olhos que passam a enxergar claramente o que antes somente víamos de uma forma um tanto quanto obliterada. E faz isso de maneira cruel ao demonstrá-lo não com exemplos fictícios ou mesmo na vida de outro, o que seria mais tolerável, mas no mais das vezes faz com que o aprendamos na nossa própria pele.
Anos após esta sábia observação do meu antigo mestre de literatura, lembrei-me de suas palavras, quando fazia uma viagem longa e inevitável. Cheguei a cogitar ir voando, mas como o dinheiro que eu dispunha era pouco não houve remédio senão enfrentar as temíveis sete horas de estradas esburacadas sob um calor escaldante, e embora estas duas coisas pareçam por si só já constituir sofrimento suficiente para uma comparação infernal, estão elas apenas na ante-sala daquele reino, pois coisas muito piores me estavam reservadas.
Minha viagem acontecia em uma época em que algumas leis sobre a conduta dentro dos transportes coletivos ainda não estavam em voga, o que fazia com que quem quer que fosse cair dentro de um ônibus, além do cansaço da viagem, estaria entregue ao comportamento selvagem de mais de trinta passageiros com os mais absurdos e inconvenientes gostos que se pode imagina
Logo que a cidade ficou para trás e ganhamos a rodovia comecei a sentir aquele insuportável fedor de fumaça de cigarro, que começou a me causar imediatamente um grande desconforto estomacal e cefálico. Embora tivesse tido o cuidado de comprar um bilhete que me dava direito a uma poltrona do lado da janela, não conseguia abri-la totalmente, pois estava emperrada em torno de dois terços de sua capacidade total. Inclinando um pouco o pescoço podia respirar mais próximo à abertura, mas isso ia me causando uma torção dolorida e não podia permanecer muito tempo desta maneira. Contava pelo menos com a vantagem de o lugar ao meu lado estar vazio.
Mais um pouco e alguém liga um rádio em um volume que poderia acordar até aos mortos, o que fazia aumentar-me um pequeno latejar nas têmporas que me viera causando o cheiro do cigarro.
Depois de três horas, finalmente paramos numa rodoviária onde eu poderia me livrar momentaneamente do desconforto. Estiquei as pernas, e aproveitei para dar uma chegadinha até o banheiro. Saí lívido, simplesmente horrorizado com o que presenciara no seu interior. Aprendi, naquele reservado, uma lição que jamais esqueci na vida: nunca deveria novamente abrir a tampa de um vaso sanitário que estivesse suspeitamente fechado sem antes acionar demoradamente a descarga.
De volta ao interior do veículo respirava mais livremente, pois havia purificado o ar dos pulmões respirando lá fora. Conseguira finalmente escancarar a janela e parecia que não voltariam a acender nenhum cigarro, pois o único fumante que havia ali dentro tinha chegado ao seu destino e já desembarcara. Acomodei-me então, com relativa serenidade para enfrentar as outras quatro horas restantes que agora, ao que tudo indicava, iriam transcorrer de forma mais amena. Fechei os olhos e esperei o movimento do ônibus. Estava quase conseguindo me desligar dos ruídos e do radio que continuava a gritar, quando senti um impacto abrupto e pesado de algo que caía ao meu lado. Arrisquei um olhar temeroso e percebi desolado que um homem suado e obeso acabava de tomar o espaço de toda a poltrona vizinha a minha, avançando ainda um pouco além da fronteira, e invadindo, em pelo menos um antebraço, o meu território. O jeito era me espremer mais para o canto para evitar o contacto desagradável com aquele gordo, suado e peludo braço.
O homem tentou por uma ou duas vezes iniciar um assunto, mas eu respondi com alguns monossílabos que acabaram por lhe desencorajar a prosseguir na tentativa de diálogo. Dali a pouco ele começou a tossir compulsivamente sacudindo todas as poltronas em um raio de uns dois metros quadrados, ao ponto de outros passageiros se virarem para trás com olhares de reprimenda. Quando o meu vizinho começou a dormir e roncando estrondosamente vinha lentamente caindo para o meu lado, me obrigando a coser-me mais ainda à lateral do veículo, para que ele não caísse com sua cabeça em meu ombro, cheguei a me arrepender de não ter incentivado a sua tentativa de conversação.
Faltando apenas uma hora e meia para o término da viagem, o ônibus parou em uma pequena cidade e não pude acreditar quando o passageiro ao meu lado se levantou e deixou o carro. As coisas começavam lentamente a melhorar. Não sentia mais odor de fumaça, estava novamente sozinho e pela janela entrava uma brisa fresca, pois começava a entardecer e a temperatura ia ficando mais agradável. Restava ainda o ruído desagradável do rádio, bastante conversa em voz alta, e mesmo um chorinho irritante de uma criança. Mas já agora sentia que seria mais fácil suportar o resto do caminho, pois que muito dos desconfortos haviam desaparecido. Esperava para breve o final da jornada e com ele o meu pleno descanso. O ônibus parecia agora ir com mais velocidade, como que fazendo tudo para abreviar a viagem. Olhei pela primeira vez para o motorista, podia vê-lo através do vidro que o separava dos passageiros, e ao o observar e sentir que o carro ia sem dúvida mais acelerado, como que querendo me conduzir mais rapidamente ao meu destino e restituir-me a tranqüilidade, lembrei-me então novamente das palavras do meu velho professor e não pude deixar de ver naquele condutor de ônibus uma espécie de guia que ia me conduzindo ao paraíso tal qual Virgílio o fora para Dante.





ÚLTIMO DESEJO


Vovô Zequinha, como era carinhosamente chamado, sentiu um mal estar súbito e tombou em plena praça pública no centro da cidade. Rapidamente se acercaram dele várias pessoas, formou-se o tumulto, alguns pediam espaço para o ar chegar até o velhinho. Já contava oitenta e três anos o homem. A cidade era pequena, a época antiga, não havia as facilidades de um socorro urgente de carros motorizados. Todos o conheciam, era viúvo e sem filhos. Enviuvara cedo em comparação com sua idade. Morreu-lhe a esposa no dia do aniversário de casamento deles. Ele, então, tinha cinqüenta anos, ela pouco mais de quarenta. Já quase aposentado, continuou por mais uma década ou menos com as atividades de uma loja de artigos de couro. Era do serviço para casa, da casa para a loja. As pessoas que o ajudavam recostavam agora sua cabeça calva, com uns poucos cabelos muito brancos, num travesseiro que foi trazido de uma casa da vizinhança. Levantada um pouco a cabeça ele podia ver, lá no alto, no começo da praça a Igreja que tantas vezes entrou e saiu. Dentre suas poucas atividades além do trabalho estava a freqüência na missa e nas festas religiosas. Era respeitado e admirado por isso, por muitas senhoras daquela cidade. Poderíamos dizer mesmo que era íntimo do padre e que ambos se admiravam mutuamente. Ao vê-lo olhar fixamente para igreja, e como já haviam dito que logo o médico estaria ali, pois já alguém estava a caminho a galope para buscá-lo em uma cidade vizinha, algum dos que prestavam socorro imaginou que o tempo não seria suficiente para a chegada da ajuda médica e sugeriu a outro dos presentes, em voz baixa, disfarçadamente, se não deviam chamar o padre. Concluíram que era o melhor a ser feito, pois cada vez se tornava mais ofegante e curta a respiração do pobre velhinho. Tudo fazia crer que não demoraria muito para expirar. Veio o padre com todos os acessórios o qual pediu para que todas as pessoas guardassem distância afim de que ele pudesse ouvir a confissão de vovô Zequinha. Ordem cumprida o sacerdote começou a récita das misteriosas palavras em latim apropriadas para o momento extremo dos homens. Ia dizendo as rezas e fazendo os tradicionais gestos que acompanham o texto sagrado, e tão comovido o fazia, com fervor e com verdadeira fé, que tinha os olhos semicerrados, o que o impossibilitava de ver a tentativa desesperada de vovô Zequinha de lhe falar algo. Um cidadão dos que estavam mais distantes, notando o desespero do velho, criou coragem e se aproximou do padre e com cuidado, cabisbaixo e com grande respeito tocou-lhe a batina na altura do ombro. O sacerdote não teve tempo de se zangar, pois com apenas uma indicação pelo olhar o homem que havia reparado na atitude do velhinho, indicou ao padre o rosto do vovô. Ao perceber uma expressão angustiada que chegava a transtornar e quase desfigurar por completo a face do ancião, talvez por alguma dor de um ataque cardíaco, grudou o padre o ouvido na boca do senhor Zequinha e pode ouvir um pedido que a princípio ele não compreendeu bem, mas o velho senhor juntou suas últimas forças e conseguiu pedir com mais clareza a presença de uma jovem de dezesseis ou dezessete anos. Não especificava no pedido quem era a menina da qual ele desejava a presença, tanto que concluíram que delirava, mas rapidamente o padre gritou o pedido aos espectadores do último ato da vida daquele querido e simpático velho, três homens correram com as pernas e com os olhos toda a extensão da praça, e em menos de dois minutos uma linda moça de cabelo liso, olhos claros que com toda certeza não poderia ter mais de dezessete anos, mas já com um corpo perfeito de mulher formada, era conduzida à presença do vovô Zequinha, ao mesmo tempo em que quem a trazia pelo braço vinha lhe inteirando do pedido, o que aos poucos ia desfazendo a expressão assustadíssima do rosto da adolescente. Esta ao se aproximar bem do velho vovô Zequinha já quase conseguia esboçar um sorriso de compaixão. O padre então a mostrou ao velhinho dizendo que ali tinha ele a moça que pedira e que falasse agora para ela o que desejava. O sacerdote, por se afastar um pouco e dar o lugar mais próximo do moribundo para a menina, não pôde ouvir quando vovô Zequinha levantando os braços e esticando as mãos trêmulas que tentavam tocar a garota emitiu suas últimas palavras antes de morrer: “peitinhos novinhos... peitinhos... mamilos róseos... eu quero... eu...”




OUTRA VIDA PARA MARIA DAS GRAÇAS OLIVEIRA

— Pai.
Não houve resposta ao primeiro chamado nem às primeiras batidas na porta do escritório. Atrás desta, seu Oliveira verificava alguns papéis sobre uma ampla escrivaninha de madeira maciça. Ao seu redor havia muitas estantes cobertas de livros de todos os tamanhos e de encadernações variadas, parecia um mar que cercava a ilha em que permanecia concentrado nos documentos que tinha diante de seus olhos. A sala era ampla e além das paredes recobertas de livros, alguns quadros, um sofá, duas poltronas e a escrivaninha, somente um tapete e uma janela com vidro transparente sem cortina. O resto era ele. Doutor Oliveira. Mais precisamente Antônio Albuquerque de Oliveira. Já nascera em família rica. O pai fora prefeito em sua cidade natal por dois mandatos consecutivos. A mãe advogada que chegara à promotoria e fizera nome e tradição. Filho único, desde cedo lhe predestinaram um grande futuro.
— Pai.
A voz que chamava e as batidas um tanto tímidas na porta, ainda não tiveram força suficiente para conseguir a atenção do ex-governador. Sim. Em tudo que haviam confiado às esperanças, de que se tornasse homem eminente, Antônio Albuquerque de Oliveira havia correspondido e suplantado as expectativas. Fora prefeito como o pai, governador do Estado, e hoje, retirado deste cargo, era um nome respeitado. Não se aposentara totalmente, voltara à consultoria jurídica como principal elemento da bem sucedida firma de advocacia que herdara dos pais: a Albuquerque Advogados. Ao longo de muitos anos e com muitos empregados, atuara sua empresa em vários setores da prática do Direito, no entanto o carro-chefe da Albuquerque Advogados era o direito tributário. Casara aos vinte e cinco anos e tivera um filho e uma filha. Como uma espécie de perseguição maldita que às vezes assombra as famílias de grandes posses, ocorreu que o primogênito do Doutor Antônio Albuquerque sofreu morte trágica e prematura em um acidente de automóvel quando tinha a idade de dezenove anos. A dor foi imensa, Albuquerque afastou-se da prefeitura que então comandava e teria se retirado de vez da política não fosse uma grande insistência de amigos e a natural amenização que o tempo traz consigo. Por ocasião desta fatalidade tinha ele quarenta e quatro anos de idade e além do apoio dos amigos, da cura natural pelo tempo, contava também com a esperança que lhe restara depositar em dobro na sua filha caçula, então com apenas cinco anos de vida.
— Pai!
Desta vez a voz e as batidas muito mais fortes finalmente fizeram o Dr. Oliveira levantar os olhos dos papeis que examinava. Retirou os óculos e caminhou lentamente até a porta do escritório para que pudesse a destrancar.
— Que demora pai. Não ouviu eu o chamar? Faz tempo que estou batendo.
— Estou trabalhando Angélica. Tenho coisas importantes para fazer. Sabe que não gosto de ser perturbado.
— Mas o senhor não pode passar tanto tempo assim trancado aqui trabalhando. Eu fico preocupada. São negócios da firma?
— Alguns, mas o mais urgente é terminar o livro.
Não era de espantar que o Dr. Antônio Albuquerque de Oliveira tivesse já três livros publicados e finalizava o quarto que estava com data marcada para ir ao prelo. Os três primeiros eram sobre direito tributário, obras até certo ponto modestas, de poucas páginas, mas que conquistaram algum apreço de parte de profissionais da área jurídica, mas muito mais dos amigos. Este último era um livro sobre política internacional. Apesar de se tratar de um trabalho que não envergonharia o autor, poderíamos dizer deste o mesmo que dos outros. Acresce que as publicações dos livros do Dr. Albuquerque de Oliveira eram bancadas pelas suas próprias posses. Ele tentou algumas editoras de renome, mas não tendo recebido nenhuma resposta definitiva resolveu, com uma ponta de vexame, que com o tempo conseguiu abafar em si mesmo, pagar para que lhe editassem as obras. As preocupações de Angélica poderiam ser consideradas até desnecessárias ou excessivas para um homem com uma história de sucesso no trabalho e na política e que do alto de seus sessenta e nove anos ainda mantinha se ativo tanto no trabalho de aconselhar os advogados de sua firma nas questões mais complexas quanto no fôlego para empreender a escrita de novo livro. Era rico e não era avaro, e isso contribuía para que não tivesse maiores preocupações que pudessem lhe colocar em risco a saúde. Mas a inquietação da filha se ligava a um fato específico. Havia seis meses que o Dr. Albuquerque ficara viúvo. Falecera-lhe a esposa, Dona Maria das Graças Oliveira, aos sessenta e cinco anos de idade, após uma breve e inútil luta contra um câncer devastador. Desde então o Dr. Oliveira modificara muito de sua conduta. Apesar de sempre ter colocado em primeiro plano o trabalho do que a família, pois considerava que o melhor que podia fazer para os seus era lhes garantir uma existência livre de preocupações de ordem monetária, após a morte da esposa ele se tornou ainda mais recluso e absorto no trabalho ou em suas leituras. Quando não estava aconselhando algum advogado da Albuquerque Advogados, estava entregue às muitas pesquisas para seu último livro, ou trabalhando na redação deste.
— Mas afinal, Angélica, veio me chamar por estar preocupada? Já fiz uma pequena refeição e logo estarei terminando por hoje, então não há motivo...
— Não pai. Que sempre me preocupa quando percebo que o senhor passa horas a fio trabalhando é certo, mas vim chamá-lo porque alguém o procura.
— Quem?
— Não conheço. Apresentou-se como Sr. Valowsky, fala com algum sotaque, parece estrangeiro, sobretudo pelo nome.
— Mas afinal o que deseja este senhor?
— Ele não falou. Mas disse que precisava tratar de um assunto com o senhor...
— Ora, mas será que ele não conhece a firma? Diga-lhe que não trato mais diretamente com os clientes, ainda mais em minha casa, ele que procure a Albuquerque Advogados. Não é possível, tenho empregados trabalhando para mim e...
— Mas Pai.
— O que é?
— Este senhor Valowsky disse que desejava falar com o senhor a respeito da mamãe.


***

Quando o homem entrou no escritório a fisionomia que encontrou estampada no rosto do dono da casa estava longe de poder ser considerada amistosa. O Dr. Antônio Albuquerque de Oliveira, tinha o cenho cerrado, o olhar severo e inquisidor, e somente os muitos anos de prática profissional como advogado e a experiência política permitiu que ele conseguisse apresentar uma espécie de sorriso diplomático ao erguer sua mão para apertar a do Sr. Valowsky, o qual já entrara com a sua estendida e embora transparecesse satisfação por conseguir entrevista com o importante empresário e político, vinha também com certo ar de tristeza, demonstrado pela cabeça ligeiramente reclinada para baixo, e enquanto ao mesmo tempo em que falava do prazer de estar diante do exmo ex-governador, transmitia-lhe o seu pesar pelo falecimento de sua esposa.
— Sr. Valenski.
— Valowsky, senhor governador, Valowsky.
— Sim claro. Queira me desculpar. Mas então senhor Valowsky, quais assuntos que possam ter alguma relação com a minha falecida esposa poderiam fazer o senhor me procurar? O senhor trabalha com o que mesmo?
— Represento uma editora, senhor Governador.
— Uma o quê?
— Uma editora, senhor.
— Ah, acho que estou compreendendo, certamente o senhor foi encarregado de alguma cobrança de encomendas de livros que talvez Maria tenha feito doar para alguma instituição, e deixou de acertar com sua firma, não é mesmo? Peço que o senhor tenha a bondade de perdoar o inconveniente, pois a doença de minha esposa foi muito grave e certamente ela não conseguiu se lembrar desta dívida. Mas se o senhor tiver a gentileza de me dizer qual é a quantia podemos acertar tudo em um minuto, e faço questão de ressarcir-lhes por qualquer prejuízo quanto a prazos de pagamento e despesas de viagem...
— Senhor governador...
— Certamente sua editora não é daqui da cidade, o senhor com certeza teve inúmeras despesas de viagem e...
— Doutor, um momento, por favor.
— Pois não?
— Me desculpe senhor governador, mas não se trata de cobrança, na realidade é o oposto.
— Como? Não entendo o senhor, eu...
— Se o senhor me permite governador, eu venho em nome de nossa editora buscar a tradução do livro e pagar a segunda parcela da quantia contratada entre nós e a dona Marie Olive Antoniete.
— Quem?
— Ora, a sua falecida esposa senhor governador.
— Ah, finalmente tudo se explica, já estava me preocupando com esta história, que susto me deu o senhor.
— Que bom que compreende senhor.
— Vejo afinal que está claro que o senhor confundiu o endereço. O nome de minha esposa era Maria das Graças Oliveira.
— Puxa, é claro, que idiota eu sou, queira desculpar a minha indelicadeza, mas...
— Imagine, não tem problema, agora se não há mais nada que eu possa fazer pelo senhor...
— Perdão senhor governador, ao me desculpar, eu me referia ao fato de ter trocado o nome de sua esposa e não de um erro de endereço.
— Não o compreendo.
— Novamente peço perdão, foi força do hábito de nos referirmos sempre a sua esposa pelo pseudônimo.
— Mas que pseudônimo? Por favor, meu senhor, deve estar havendo algum grave engano, e num momento muito inoportuno, pois como o senhor sabe ainda é muito recente a morte de minha esposa.
— Senhor governador, peço que me ouça para que possamos compreender a situação, pois para mim também é uma surpresa que o senhor não estivesse a par disso.
— A par do que! Ora que diabos! Onde o senhor pretende chegar?
— Se o senhor fizer a gentileza de me dar cinco minutos de sua atenção eu acredito que posso explicar tudo com clareza, pois agora compreendo que com toda certeza sua esposa mantinha estas suas atividades em segredo.
— Mas que atividades, homem de Deus!
— Pai?
Era Angélica que entreabria a porta do escritório depois de ouvir o pai elevar tanto a voz.
— Entre minha filha, entre, você precisa me ajudar a explicar a este cavalheiro que deve haver um terrível engano e que a pessoa a que ele se refere não pode ser a sua mãe!
— Mas o que está acontecendo? Senhor Valowsky o que o senhor deseja? Meu pai é um homem ocupado e já não tem idade para ficar nervoso. Poderia esclarecer de uma vez a que devemos a sua visita?
— Senhorita, pois é justamente o que estou tentando fazer. Se puder pedir ao senhor governador que me ouça por alguns instantes logo tudo será esclarecido.
— Pai sente-se aqui, tente se acalmar. Vamos ouvir o que este senhor tem a dizer.
— Mas minha filha ele certamente confundiu o endereço, pois disse que procura uma Marie Antoniete.
— Quem?
— Marie Olive Antoniete, senhorita. Era este o pseudônimo que a senhora sua mãe, Dona Maria das Graças Oliveira usava em seus trabalhos.
— Está vendo Angélica?! – falava sentado o Dr. Albuquerque, enquanto tentava levantar e era contido pela filha.
— Mas senhor Valowsky o que o faz pensar que esta senhora e a minha mãe são a mesma pessoa?
— Dona Angélica, sua mãe trabalhou para nossa editora por alguns anos, infelizmente não conseguimos obter exclusividade, mas pudemos fazê-la aceitar fazer alguns trabalhos de tradução para a Editora Nova Polonesa.
— Tradutora? Mas minha mãe pouco se dava com livros, vivia para a família e algumas viagens com fins filantrópicos, fora isso, apesar de nossa condição permitir que ela não trabalhasse em casa, sempre fez questão de supervisionar os trabalhos de arrumação, ela mesma arrumando muitas coisas na casa, assim como, apesar de aceitar ajuda de empregados na cozinha não deixava de ela própria preparar todas as refeições.
— Certamente. Ela era mesmo uma mulher admirável, mas paralelamente a isso...
— Bem, vamos acabar de uma vez com isso. Como o senhor tem certeza que esta tal de Marie Olive era a mesma pessoa que a minha mãe?
— Bom, se a senhorita tiver a bondade de analisar este contrato, assinado por sua mãe, para a tradução de um romance polonês, poderá ver o pseudônimo e a assinatura do nome real dela.
— Não é possível! Isso não pode ser verdade! – dizia balançando a cabeça negativamente o Dr. Albuquerque de Oliveira – Sua mãe? Maria? Traduzindo polonês? Mas que absurdo é este? Ela mal abria um livro. Além de uns poucos romances de quinta categoria, só tinha olhos e ouvidos para novelas e programas idiotas da televisão!
— Pai, por favor, não exagere, mamãe era uma mulher inteligente e sensível.
— Inteligente? Inteligente? Sensível sim é claro, uma grande alma sempre pronta a ajudar os mais necessitados. Sempre viajando para visitar instituições e fazendo doações, sempre viajando...
— Está vendo, senhor governador? Talvez em algumas destas viagens ela tratasse de seus assuntos literários.
— Mas que assuntos literários? Como assim “assuntos literários”?
— Pai, acalme-se, eu lhe peço.
— Bem, senhor governador, as demais atividades literárias de sua falecida esposa não me dizem respeito agora. Veja aqui tem o documento que comprova a verdade do que estou dizendo. É o contrato com a nossa Editora. Ela nos informou a pelo menos nove meses atrás que já tinha a tradução pronta, mas orientou que só a viéssemos buscar na data de hoje. Como o prazo que ela tinha só terminava no fim do próximo mês, não poderíamos exigir que nos entregasse antes.
O senhor Albuquerque já ia estendendo a mão para pegar o documento, mas a filha se antecipou, arrancou-o das mãos do senhor Valowsky, e começou a ler silenciosamente.
— Então, Angélica, então? Diga alguma coisa.
— Parece que é verdade pai.
— Mas como? Como é que pode? Sua mãe? A Maria? Sabia polonês? Isso é ridículo!
— Senhor governador, é uma surpresa para mim que o senhor não estivesse sabendo disso tudo, mas devo lhe confessar que não era somente polonês que a sua esposa conhecia. Ela traduzia, para outras editoras, livros de vários outros idiomas. Que eu me lembre agora, ela já fez traduções do francês, alemão, espanhol e russo.
— Russo? Russo? Mas com todos os diabos, como é possível uma coisa destas! Como ela pôde fazer uma coisa destas comigo? Esconder-me isso durante todos estes anos? Que lia, falava, escrevia, sei lá, nestas línguas?
— Alguma vez o senhor perguntou a ela, pai?
— Mas por que eu faria uma coisa desta? Não seja tola Angélica. Como eu ia imaginar? Acha que devia ter feito o que? Suponho que pense que um dia qualquer no café da manhã eu devia ter lhe dito, passe o suco de laranja, por favor, a propósito, por acaso você sabe falar polonês ou russo? Tenha a santa paciência!
— Senhor governador.
— Não sou mais governador, pare com esta bobagem de senhor governador prá cá, senhor governador prá lá.
— Queira me desculpar senhor.
— Bem, acabemos logo com tudo isso, quer se retirar, por favor, o senhor não nos deve nada, tenha uma boa tarde.
— Mas senhor gover..., quero dizer, senhor Oliveira, a sua senhora Marie Olive Antoniete, tem contrato conosco e nos instruiu para retirar o livro em sua residência na data de hoje, tenho aqui uma ordem assinada por ela, se me permite...
— Não conheço nenhuma Marie Olivie, mas que inferno!
— Sim senhor, mas está assinado com o nome verdadeiro de sua senhora, dona Maria das Graças Oliveira, e como advogado o senhor sabe que a editora tem direito de receber o trabalho. Aliás, como havia lhe dito tenho comigo o último pagamento para entregar-lhe.
— Não me interessa! Não me interessa este dinheiro, o senhor acha que eu preciso dele? Receber dinheiro de um trabalho que minha mulher, “minha mulher”, praticava escondido?
— Mas pai, era um trabalho honesto.
— Honesto? Honesto seria ela ter me dito a verdade. Meu Deus, quarenta e quatro anos sob o mesmo teto com uma pessoa que você não conhece!
— Senhor aqui está o cheque, é minha obrigação entregá-lo. Marie, digo, sua esposa, nos orientou que o trabalho de tradução estaria dentro de uma caixa de madeira num fundo falso de um armário embutido no quarto de dormir.
— Não quero saber deste dinheiro, sou um homem rico, e bem sucedido, estou terminando meu quarto livro, posso receber pagamento pelos meus próprios livros!
— Pai acalme-se, por favor. Não foi nenhum crime o que a mamãe fez. Eu também estou pasma com esta história toda, mas afinal era um direito dela.
Angélica pega o cheque e lê:
— Quinze mil reais.
— Exatamente, é a segunda parte do pagamento, a senhora sua mãe já havia recebido outros quinze mil adiantados.
— Mixaria!
— Pai!
— Na realidade senhor governador...
— Já não disse que não sou mais governador, mas que amolação!
— Sim claro, desculpe senhor, mas como dizia, na realidade sua esposa praticava tradução porque gostava, não precisava do dinheiro.
— É obvio que não precisava eu sempre lhe dei de tudo!
— Tenho certeza disso senhor, mas o que eu queria dizer é que ela tinha outras fontes de renda.
— Como assim? O que o senhor vai me contar agora? Daqui a pouco vai me dizer que ela pilotava aviões em vôos internacionais!
— Não senhor, não que eu saiba. Refiro-me a outras atividades na linha literária e outros rendimentos provenientes de suas obras.
— Mas que outras obras, senhor Valowsky?
— Senhorita, a senhora sua mãe, sob o pseudônimo que já conhecem, era autora de vários livros de literatura policial. Sendo que dois deles foram transformados em filmes, talvez a senhora tenha assistido. Se eu estou bem lembrado estes livros foram “A Pérola”, e “O Signo do Punhal”.
O senhor Antônio Albuquerque de Oliveira sentado na poltrona de sua escrivaninha de madeira maciça, tinha os dedos enterrados na cabeça, entre os cabelos grisalhos. Olhava para baixo em direção às últimas páginas digitadas de seu novo livro, mas só conseguia enxergar no papel alguns rabiscos ininteligíveis. Levantou-se lentamente e caminhou para a porta do escritório. Angélica o seguiu, preocupada, enquanto fazia um sinal para que o senhor Valowsky aguardasse no escritório. Acompanhou seu pai guardando alguma distância. Antônio andava muito devagar e tinha o corpo solto e apático. Atravessou o corredor até chegar à porta do quarto de dormir do casal. Entrou, abriu o armário embutido, e depois de retirar algumas roupas de cama descobriu o fundo falso. De dentro deste retirou uma caixa grande que colocou sobre a cama. Sentou-se ao lado dela e a abriu. Dentro havia um pacote embrulhado com papel pardo e amarrado com barbante. Desfez o embrulho e apareceu uma pilha de papel que continha aproximadamente umas quinhentas páginas digitadas, onde na primeira delas podia-se ler:


“O Veneno Secreto das Mulheres”Um Romance de
Katya RenowyskiTradução de
Marie Olivie Antoniete



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